quarta-feira, 31 de maio de 2017

Psicologia de um vencido - Augusto dos Anjos (Exercícios com gabarito)

                                   Eu, filho do carbono e do amoníaco,
                                   Monstro de escuridão e rutilância,
                                   Sofro desde a epigênesis da infância,
                                   A influência má dos signos do zodíaco.

                                  Profundissimamente hipocondríaco,
                                  Este ambiente me causa repugnância...
                                  Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
                                  Que se escapa de um cardíaco.

                                  Já o verme - este operário das ruínas -
                                  Que o sangue podre das carnificinas
                                  Come, e à vida em geral declara guerra,

                                  Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
                                  E há de deixar-me apenas os cabelos,
                                  Na frialdade inorgânica da terra!

                                                                          (Augusto dos Anjos)

epigênesis: teoria da formação dos seres por gerações graduais.
frialdade: frieza.
hipocondríaco: aquele que se preocupa excessivamente com a própria saúde; aquele que se sente deprimido ou com tristeza profunda.
rutilância: brilho intenso.

1. A linguagem do poema surpreende e modifica uma tradição poética brasileira, em grande parte construída com base em sentimentalismo, delicadezas, sonhos e fantasias.
   a) Destaque do texto vocábulos empregados poeticamente por Augusto dos Anjos e     tradicionalmente considerados antipoéticos.
      Carbono, amoníaco, epigênesis, hipocondríaco, verme, etc.
      b) De que área do conhecimento humano provêm esses vocábulos?
      Provêm da ciência, particularmente da Química.

2. O poema pode ser dividido em duas partes: a primeira trata do próprio eu lírico; a segunda, da morte.
     a) Como o eu lírico encara a vida e a si mesmo nas duas primeiras estrofes?
      Vê a vida e a si mesmo de forma pessimista, pois entende que o homem é matéria, química, e considera que tudo caminha para a destruição.
     b) Que enfoque é dado à morte nas duas últimas estrofes?
        A morte é considerada o destino final e fatal de toda forma de vida. Cabe ressaltar também a crueza do tratamento dado à morte, representada pela imagem do verme a comer "sangue podre".

3. O título é uma espécie de síntese das ideias do poema. Justifique-o.
     Embora o título contenha a palavra psicologia, o poema detém-se a tratar da matéria das substâncias químicas que formam o eu, evitando maior introspecção. Apesar disso, é possível constatar o negativismo interior do eu lírico, que se considera "vencido" em virtude da fragilidade física do ser humano e da força implacável da morte.

4. O poema é centrado no eu. Apesar disso, pode-se dizer que suas ideias são universalizantes? Justifique.
    Sim, porque a condição humana retratada pelo poema (constituição e fragilidade física do ser humano, fatalidade da morte) não é exclusiva do eu lírico, mas universal.

5. Identifique no texto ao menos uma característica naturalista e outra simbolista.
    A característica naturalista do poema está no cientificismo; a característica simbolista encontra-se na visão decadentista do eu lírico sobre a vida.

Fonte:

Cereja, William Roberto
       Português linguagens: volume 3 / William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. - 7. ed. reform. - São Paulo: Saraiva, 2010.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Pausa para um momento romântico



 

"Quero"- Carlos Drummond de Andrade

"Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor."

   



Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado PRADO, A. Terra de Santa Cruz, Rio de Janeiro: Record. 2006. p. 25.
 
CONSIDERAÇÕES:
 
No poema de Carlos Drummond de Andrade o eu lírico necessita ouvir sempre e repetidas vezes da pessoa amada as três palavras mais importantes pra ele: "eu te amo"; ou caso contrário, saberá que não é correspondido ou amado.
Já no poema de Adélia Prado o amor é demonstrado através do gesto, do prazer que a mulher tem em ajudar o marido a tratar os peixes a qualquer hora da noite. O diálogo entre os dois, a amizade, a intimidade, o companheirismo e até mesmo o silêncio intensificam o verdadeiro significado da palavra casamento.