segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector - exercícios com gabarito

 Felicidade clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 9 – 12. 


1. Quem é a protagonista da história? Qual característica dessa personagem é ressaltada no primeiro e terceiro parágrafos?

A protagonista da história é a narradora.

A característica ressaltada em ambos os parágrafos é o fato de ser apaixonada por livros.

2. O conto “Felicidade clandestina” é narrado em primeira ou terceira pessoa? Justifique sua resposta.

Narrado em primeira pessoa; trata-se de um narrador-personagem.

3. Os personagens podem ser classificados como protagonistas (personagem mais importante da história) ou antagonista (aquele que se contrapões ao protagonista). Segundo a narradora do texto, qual era a única vantagem da personagem antagonista sobre as outras personagens e como ela utilizava essa vantagem para se vingar das colegas? 

 A personagem antagonista tinha um pai dono de livraria.

Ela se vingava das colegas deixando de lhes dar livros, mesmo quando faziam aniversário; em vez

disso, entregava a elas cartões-postais da loja do pai, com paisagens da própria cidade onde

viviam: Recife.

4. Releia a seguinte passagem do conto: 

“A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. ”

Em que sentido a felicidade é clandestina para a narradora? A fim de elaborar sua resposta, procure no dicionário o significado do adjetivo clandestino

 Para a narradora-personagem, a felicidade parece ser “clandestina”, ou seja, ilegal, ilegítima,

proibida por se tratar de um sentimento constantemente adiado “para o dia seguinte”.

5. Em “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, a narradora refere-se à presença do livro em sua vida como um ritual de passagem da adolescência para a maturidade. Explique essa afirmação. 

 Essa afirmação refere-se ao livro como objeto erótico, à paixão por obtê-lo como antecipação da

paixão que, quando mulher, a narradora-personagem sentiria pelo homem a quem amasse.


BONS ESTUDOS!


EXERCÍCIOS SOBRE VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS (FRAGMENTO)

 

     VIDAS SECAS - GRACILIANO RAMOS - (FRAGMENTO)




          Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.

        Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao bingo, pôs-se a fumar regalado.

        --- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

        Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

        Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

        --- Você é um bicho, Fabiano.

        Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

        Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.

        --- Um bicho, Fabiano.

        Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.

        Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.

        Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.

        Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. (...) Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.

                                                       (Vidas secas.27. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1970. p. 53-5.)

Aió: bolsa usada na caça.

Binga: isqueiro.

Camarinha: quarto de dormir.

Derrear-se: vergar-se, inclinar-se.

Gretado: rachado, com fendas.

Mucunã: trepadeira de grande porte, comum nas Guianas e em alguns Estados brasileiros.

Quipá: planta brasileira da família dos cactos.

Regalado: com prazer, satisfeito.

 

ATIVIDADE 1

1. Nesse episódio de Vidas Secas lido, é possível extrair algumas informações a respeito da personagem Fabiano e de sua família. Que razões teriam levado Fabiano e sua família à fazenda onde ele mora e trabalha como vaqueiro?

   A fuga da seca.

2. Portanto, que tipo de problema social é enfocado pela obra?

   O problema da seca, da miséria, da migração, da falta de oportunidades sociais, etc.

3. Além de abordar temas ligados à realidade nacional, outro traço do romance de 30 é a busca de uma linguagem brasileira. Observe a linguagem empregada no texto e as referências ao homem e à natureza. Que palavras do texto são típicas do português brasileiro e servem para designar elementos da paisagem nacional?

           Aió, mucunã, quipá, mandacaru, xique-xique

4. Considerando o tema da obra e as descrições de Fabiano e da paisagem, levante hipóteses: Qual é a região brasileira retratada na obra?

    O Nordeste.

5. Ao longo do texto, a personagem é caracterizada de três formas diferentes. Observe:

 

“___ Fabiano, você é um homem”

“encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra”

“___ Você é um bicho, Fabiano.”

“Parecia um macaco”

 

A que elementos da natureza Fabiano é comparado nos fragmentos?

     A animais.

 6. Observe o 2º e 3º parágrafos do texto. Fabiano, depois de preparar um cigarro de palha, exclama satisfeito: “___ Fabiano, você é um homem”. Considerando o histórico da personagem, responda: Para Fabiano, o que é sentir-se um homem?

É ter um emprego e uma casa para morar, sentir-se útil e ligado a um lugar e ter até direito a pequenos prazeres, como fumar.

7. Observe estes dois trechos do texto:

 

“Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. [...] estava plantado.”

“Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano.”

 

Esses trechos mostram uma mudança no interior do pensamento de Fabiano, como se ele tomasse consciência de sua real condição. De que Fabiano toma consciência?

Toma consciência de que a terra não é sua e que, a qualquer momento, talvez aconteça outra seca e ele tenha de migrar novamente.

8. No trecho, Fabiano, ao analisar-se, considera-se, sucessivamente, um homem e um bicho.

Levando-se em consideração o perfil dessa personagem no contexto da obra, a melhor explicação é que ele :

a) sente-se desprovido de racionalidade na relação interpessoal com outras personagens. 

b) percebe-se acuado e rejeitado pela sociedade dos homens, seus semelhantes.

c)  acha-se inferior aos outros membros da família.

d) reconhece-se bicho e isso o satisfaz, porque bicho é um ser que sabe resolver problemas práticos.

e)  vê-se como animal, já que todos o tratam dessa maneira

9. De acordo com a leitura do texto, pode-se afirmar que:

a) as lembranças do passado enchem de beleza e ternura a vida de Fabiano.

b) Fabiano mostra-se enfurecido por não viver em outro lugar.

c) Fabiano, assim como os retirantes nordestinos, sente-se apático diante das adversidades climáticas.

d) depois de muito sofrer, Fabiano e sua família conseguem se instalar em uma pequena propriedade rural.

e) o retirante Fabiano e sua família viviam rodeados de bichos, em um lugar ermo.

10. Com base no estudo de texto feito, conclua: De modo geral, como se caracteriza o romance de 30 quanto aos temas e ao recorte da realidade?

 Enfoca problemas sociais brasileiros, especialmente de algumas regiões, como o Nordeste.


           BONS ESTUDOS!