domingo, 9 de abril de 2017

Mário de Sá-Carneiro: labirinto e busca (vida/obra e exercícios)




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    Ao lado de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), também participante da revista Orpheu, é uma figura de destaque da primeira geração do Modernismo português. O escritor nasceu em Lisboa e ficou órfão de mãe aos dois anos de idade. O pai, envolvido com a carreira militar, viagens e uma vida boêmia, deixou o filho aos cuidados dos avós, que viviam em uma quinta.          Cercado de mimos e distanciado das dificuldades práticas da vida, Sá-Carneiro tornou-se um adolescente inadaptado, de difícil comunicação com as pessoas, sobretudo com as mulheres, provavelmente por causa de seu complexo de obesidade.
   Iniciou sua carreira literária no liceu (equivalente ao ensino médio, atualmente), onde escreveu a peça teatral Amizade, em parceria com o amigo (também órfão e inadaptado como ele) Tomás Cabreira Jr. Sá-Carneiro ficou marcado para sempre pela forma como se deu a morte desse amigo, que se suicidou no pátio da escola, diante dos colegas e professores, numa mistura de desespero exibicionismo.
  Talvez por causa dessa experiência, a ideia de suicídio esteja presente em várias obras de Sá-Carneiro e o tenha perseguido até a morte.
   Os versos do poema "Quase", de Mário de Sá-Carneiro, ilustram esse sentimento de frustração e autodestruição. Coincidentemente, o grupo musical Pato Fu também criou uma canção intitulada "Quase", com a mesma perspectiva diante da vida. Compare os dois textos:

              De tudo houve um começo... e tudo errou...
              - Ai a dor de ser - quase, dor sem fim... -
              Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
              Asa que se enlaçou mas não voou...
                        
                            (Mário de Sá-Carneiro)

            Ela é quase tudo o que eu sonhei
            E eu sou quase aquilo que sempre evitei
            E falhei, sim, falhei...
            Quase um amor
            Quase um caminho
            Que me deixou
            Quase sozinho
            E quase que fiquei contente

                                                  ("Quase", de John Ulhoa)

     De fato, a ideia de suicídio acabou se concretizando. Depois de se dedicar à prosa, à poesia e ao teatro, numa vida agitada em meio aos ambientes artísticos de Paris e Lisboa, o escritor, com apenas 25 anos, suicidou-se num quarto de hotel parisiense, deixando cartas para o amigo Fernando Pessoa, para a amante e para o pai.
   Tanto os personagens da prosa de ficção quanto o eu lírico dos poemas de Sá-Carneiro são geralmente seres voltados para si mesmos, com a personalidade em desagregação. Por isso, buscam um "outro" no seu próprio interior, um duplo que completasse o vazio existencial e o negativismo do eu primeiro.
     Esse desdobramento de personalidade lembra as experiências do amigo Fernando Pessoa com seus heterônimos. Contudo, há uma diferença essencial: enquanto em Pessoa os desdobramentos resultam numa obra rica e diversificada, com várias vozes ou poetas independentes, em Sá-Carneiro a dissociação do eu quase sempre conduz à frustração e à autoflagelação. Provavelmente o suicídio do autor deveu-se à sua incapacidade de conciliar esses dois mundos ou de suportar o mundo real, com seu moralismo e suas convenções. Toda a obra de Sá-Carneiro - de que fazem parte a peça Amizade, as novelas de Princípio e Céu em fogo, a narrativa A confissão de Lúcio e o livro de poemas Dispersão - foi escrita entre 1912 e 1916.

     LEITURA

Os versos seguintes são um fragmento do poema "Dispersão", escrito em 1912, em Paris. O poema integra a obra homônima, publicada em 1914.

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 
  
Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 
  
Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 
  
(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 
  
Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família). 
  
O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 
  
A grande ave dourada 
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus. 
  
Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo: 
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo. 
  
Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que projeto: 
Se me olho a um espelho, erro — 
Não me acho no que projeto. 
  
Regresso dentro de mim 
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada, 
Sequinha, dentro de mim. 
  
Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida.  
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma. 

1. No poema, o eu lírico faz uma espécie de avaliação de sua trajetória de vida, tratando de momentos vividos no passado e de momentos vividos no presente.
a) Observe os tempos verbais empregados. Eles confirmam ou negam essa divisão temporal? Por quê?
b) Tomando por base a 3ª estrofe, que tipo de expectativa o eu lírico tem para o presente e para o futuro?
c) Que significado tem o passado para o eu lírico?
d) Como se sente o eu lírico no presente? Comprove sua resposta retirando um ou dois versos do poema.

2. Como é comum nos escritos de Sá-Carneiro, o poema põe em questão a identidade do eu lírico.
a) Interprete os versos:

                               Não sinto o espaço que encerro
                               Nem as linhas que projeto:
                               Se me olho a um espelho, erro -
                               Não me acho no que projeto.

b) Retire do texto exemplos de desdobramento da personalidade ou da busca de um "outro" dentro do eu.

3. Justifique o título do poema a partir das ideias nele contidas.


RESPOSTAS

1.
A) Confirmam: as formas verbais do pretérito perfeito e do imperfeito do indicativo referem-se ao tempo passado; as formas verbais do presente do indicativo referem-se ao tempo presente.
B) Tem uma expectativa pessimista. Para ele, não há presente nem futuro, há apenas passado.
C) O passado, para ele, significa a unidade e a perfeição de um eu do qual sente saudades e que, no presente, se desdobrou em um ser sem identidade. Imagens como "Astro doido a sonhar" e "A grande ave dourada" comprovam a idealização do passado.
D) Sente-se perdido, frustrado, morto interiormente, sem forças para voltar a ser o que era. " Não me acho no que projeto" / "Tenho a alma amortalhada"

2.
A) Esses versos revelam a falta de identidade; o eu lírico não reconhece a si mesmo.
B) "E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim", e toda a 9ª estrofe.

3.
O título está relacionado com a diluição do ser, com a perda da identidade original e com a busca de uma nova identidade.


LEITURA

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!


De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...


Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...



LEITURA

DISPERSÃO

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 
  
Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 
  
Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 
  
(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 
  
Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família). 
  
O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 
  
A grande ave dourada 
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus. 
  
Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo: 
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo. 
  
Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que projeto: 
Se me olho a um espelho, erro — 
Não me acho no que projeto. 
  
Regresso dentro de mim 
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada, 
Sequinha, dentro de mim. 
  
Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida.  
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma. 
  
Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira 
Eu nunca vi... Mas recordo 
  
A sua boca doirada 
E o seu corpo esmaecido, 
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 
  
(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei.  
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que não sonhei!... 
  
E sinto que a minha morte — 
Minha dispersão total — 
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 
  
Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul-de-agonia 
Em sombra e além me sumo. 
  
Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas... 
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas... 
  
Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas pra se dar 
Ninguém mais quis apertar 
Tristes mãos longas e lindas 
  
Eu tenho pena de mim, 
Pobre menino ideal... 
Que me faltou afinal? 
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... 
  
Desceu-me na alma o crepúsculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou; 
Não vivo, durmo o crepúsculo. 
  
Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em urna bruma outonal. 
  
Perdi a morte e a vida, 
E, louco, não enlouqueço... 
A hora foge vivida, 
Eu sigo-a, mas permaneço,... 
.................................. 
Castelos desmantelados, 
Leões alados sem juba 
......................................

                 BONS ESTUDOS!


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