segunda-feira, 21 de março de 2022

Continuidade dos parques, de Julio Cortázar ( Exercícios com gabarito)

                      Continuidade dos parques

                                               Julio Cortázar

 

                        


 

            Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse de quando em quando o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio perverso de se afastar linha a linha daquilo que o rodeava, e sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicotaço de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame cruel mal se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do outro. Começava a anoitecer.

            Já sem se olhar, ligados firmemente à tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que levaria à casa. Os cachorros não deviam latir, e não latiram. O capataz não estaria àquela hora, e não estava. Subiu os três degraus do pórtico e entrou. Pelo sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

                                                Do livro Final do jogo. Tradução de Remy Gorga Filho

 

1. O conto está centrado na figura de um leitor.

a) Considere as informações sobre ele e trace um perfil.

O personagem leitor do romance parece ser um homem que gosta de ler e que é abastado, uma vez que tem um sítio e conta com o trabalho de funcionários como um mordomo e um procurador.

b) Descreva o ambiente onde a personagem se encontra. O que ele sugere.

Um escritório com vista para um parque de carvalhos e poltrona de veludo verde de espaldar alto. Sugere conforto, aconchego.

2. O espaço está dividido principalmente entre o escritório e o parque dos carvalhos.

a) Que outra divisão a duplicidade do espaço marca?

Divisão entre a realidade (dos negócios urgentes, da carta ao procurador, da discussão com o mordomo) e a história que a personagem lê no romance.

b) Como essa divisão é quebrada?

Ela é quebrada ao final do conto, quando a história do romance chega à realidade do escritório da personagem e a sua figura sentada na poltrona.

3. O romance que o leitor personagem lê conta com muitas peripécias, ou seja, acontecimentos que marcam mudanças na trajetória da história. As peripécias são muito presentes nos folhetins: histórias publicadas em capítulos no rodapé dos jornais do século XIX cujos finais eram marcados por uma peripécia que deixava o leitor querendo saber como continuaria a história. Esse recurso de construção narrativa garantia o interesse do leitor e a venda das edições seguintes do jornal.

a) Quais acontecimentos presentes no romance podem ser considerados típicos desse tipo de história?

A paixão secreta, o encontro proibido entre os amantes em uma cabana, os beijos, “as cerimônias de uma paixão secreta”, o punhal furtivo, álibis, a separação em caminhos opostos, a mulher correr com o cabelo solto no crepúsculo etc. Além disso, o final marcado por uma tensão sobre o que acontecerá em seguida seria um gancho para causar no leitor a vontade de continuar a leitura.

b) Que tipo de envolvimento a personagem do conto tem com o romance que lê?

Ela se entrega à história, deixa-se absorver por ela.

4. O conto tem um ponto que marca a fusão dos espaços.

a) Copie o trecho em que isso acontece.

“Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte”.

b) Releia: “Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir”. Qual corpo é preciso destruir?

O texto sugere que, ao encontrar com o amante, a mulher pensa sobre destruir o corpo de seu marido para poder se entregar à paixão proibida.

5. O final do conto guarda uma surpresa para o leitor.

a) Qual leitor é surpreendido?

Tanto o leitor do romance como o do conto de Cortázar.

b) O leitor do romance, nesse contexto, é leitor ou personagem? Explique.

O leitor do romance é duplamente personagem: do conto de Cortázar e do romance que lê.

6. O conto de Cortázar pode ser lido como uma brincadeira que o autor faz com o leitor de seu próprio conto. Mas também pode ser entendido como uma crítica à condição de um certo tipo de leitor.

a) Nesse jogo com o leitor do conto de Cortázar, o que sugere a cena final?

Sugere que qualquer leitor pode ser apunhalado pela surpresa da trama se mantiver uma postura ingênua diante do que lê.

b) Compreender esse tipo de jogo exige uma atitude diferente da que o leitor personagem do conto mantém diante do romance que lê. Qual atitude se exige?

Exige uma atitude participativa da construção do sentido do texto, não apenas de “entrar na história”, mas também de questioná-la.

7. Todo texto defende uma ideia. Considere as reflexões que a questão 6 provocou e responda: que ideia o conto de Cortázar defende? Do que ele fala em sua camada propositiva?

Resposta pessoal.

8. Que explicação poderia justificar o título do conto?

A ideia de continuidade se traduz na circularidade do conto, que termina dentro do mesmo espaço onde começa, trazendo para dentro do gabinete a trama que sai do livro e continua no espaço da realidade do leitor personagem; a ideia de continuidade também está presente no jogo com o leitor do conto de Cortázar, que se projeta na personagem, que tanto pode se envolver na trama relatada quanto se surpreender diante do inesperado final.

 

Fonte:

Campos, Maria Tereza Rangel Arruda

     Multiversos: língua portuguesa: ensino médio/

Maria Tereza Rangel Arruda Campos, Lucas Kiyoharu

Sanches Oda. – 1. ed. – São Paulo: FTD, 2020.


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