O
fragmento a seguir situa-se no último capítulo de Triste fim de Policarpo Quaresma e mostra Quaresma logo após ter
denunciado ao presidente marechal Floriano Peixoto as injustiças feitas aos
prisioneiros na prisão.
Como
lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço?
Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos
patrióticos, merecia aquele triste fim? De que maneira sorrateira o Destino o
arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito,
tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os
seus atos passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que
aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou
teriam sido os fatos externos, que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no
escravo da sentença da onipotente divindade? Ele não sabia, e, quando teimava
em pensar, as duas coisas se baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e
exata lhe fugia.
Não estava ali há
muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e, pelo cálculo
aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia
consultá-lo à fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
Por que estava
preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira, nada lhe quisera dizer;
e, desde que saíra da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra
com ninguém, não vira nenhum conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que
lhe podia, com um olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas.
Entretanto, ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente,
protestando contra a cena que presenciara na véspera.
Não se pudera
conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo,
para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera
diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem
moral e a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com
paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e
nitidamente.
Devia ser por
isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos
seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo
umidade, misturado com os seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como
acabarei? E a pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela
angústia provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta
tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a
morte, mais esta que aquela.
O tempo estava de
morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória
e senti-la bem na consciência coisa sua, própria, e altamente honrosa.
Iria morrer, quem
sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara
toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no
intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua
mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como
ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o
que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara,
não pandegara, não amara - todo esse lado da existência que parece fugir um
pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não
experimentara.
Desde dezoito
anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar
inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em
que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em
nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das
suas coisas de tupi, do folclore, das suas tentativas agrícolas... Restava
disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o
escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras
não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E,
quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde
estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois
não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma
decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.
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1.
Policarpo Quaresma participava como voluntário na Revolta da Armada, ao lado de
Floriano Peixoto, quando foi preso. De acordo com as pistas do texto, levante
hipóteses:
a)
Por que Quaresma foi preso? Por ter feito uma crítica ao modo como os
presos eram tratados na prisão.
b)
O que provavelmente ele viu na prisão, e o teria levado a escrever a
carta-denúncia?
Quaresma, como carcereiro, vira presos
serem levados para serem fuzilados às escondidas.
c)
Como Quaresma supõe que Floriano Peixoto interpretou essa iniciativa dele?
Como traição.
2.
Na prisão, Quaresma faz uma retrospectiva e uma avaliação de sua vida, de sua
conduta e de seus valores. A que conclusão chega?
Ele chega à conclusão de que tudo fora
inútil, pois não houve reconhecimento de seus esforços pelo bem do Brasil.
3.
Observe estes fragmentos do texto:
“e
agora que estava na velhice, como ela [a pátria] o recompensava, como ela o
premiava, como ela o condecorava? Matando-o.”
“Onde
estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras?
a)
Nesses fragmentos, a quem Quaresma atribui a responsabilidade, respectivamente,
por sua prisão e pela violência da guerra?
À pátria e ao povo.
b)
Quem, na verdade, tinha responsabilidade por tais ocorrências?
O governo do marechal Floriano.
c)
Apesar de Quaresma fazer uma autocrítica, que característica da personagem
ainda se mantém nesses fragmentos?
A ingenuidade.
4.
No texto, é empregada a técnica do discurso indireto livre. Identifique um
trecho em que tal recurso foi utilizado e explique o efeito de sentido que ele
provoca no texto.
“Como acabarei? Como acabarei?”. O emprego do discurso indireto
livre permite retratar de modo mais aprofundado o estado psicológico de
Quaresma na prisão.
5. No final do texto se lê: “ A sua vida era uma decepção, uma
série, melhor, um encadeamento de decepções”. Explique a diferença de sentido
entre “série de decepções” e “encadeamento de decepções”.
“Série de decepções” dá uma noção de
sequência, apenas. Já “encadeamento de decepções” dá uma ideia de causa e
efeito, isto é, uma decepção leva a outra, e assim sucessivamente.
6. Policarpo Quaresma, muitas vezes associado a D. Quixote,
personagem de Miguel de Cervantes, é um típico herói problemático. Explique por
quê.
Porque era um idealista, um visionário,
que se frustra ao ver que seus projetos não são compatíveis com a realidade do
país.
7. Pode-se dizer que o romance Triste
fim de Policarpo Quaresma faz uma crítica à sociedade da época. Qual é o
alvo dessa crítica?
Entre outras possibilidades: por um lado,
o nacionalismo ingênuo e desprovido de críticas cultivado por algumas pessoas e
grupos sociais; por outro, o autoritarismo e a falta de valores éticos e morais
dos governantes.
BONS ESTUDOS!
FONTE:
Cereja, William Roberto
Português linguagens: volume 3 / William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. - 7. ed. reform. - São Paulo: Saraiva 2010.
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