sexta-feira, 25 de novembro de 2022

O Quinze, de Rachel de Queiroz - exercícios com gabarito

 

O episódio a ser lido retrata as dificuldades de Chico Bento e sua família durante a viagem de retirada.

 

            Eles tinham saído na véspera, de manhã, da Canoa.

            Eram duas horas da tarde.

            Cordulina, que vinha quase cambaleando, sentou-se numa pedra e falou, numa voz quebrada e penosa:

             - Chico, eu não posso mais... Acho até que vou morrer. Dá-me aquela zoeira na cabeça!

            Chico Bento olhou dolorosamente a mulher. O cabelo, em falripas sujas, como que gasto, acabado, caía, por cima do rosto, envesgando os olhos, roçando na boca. A pele, empretecida como uma casca, pregueava nos braços e nos peitos, que o casaco e a camisa rasgada descobriam.

(...)

            No colo da mulher, o Duquinha, também só osso e pele, levava, com um gemido abafado, a mãozinha imunda, de dedos ressequidos, aos pobres olhos doentes.

             E com a outra tateava o peito da mãe, mas num movimento tão fraco e tão triste que era mais uma tentativa do que um gesto.

            Lentamente o vaqueiro voltou as costas; cabisbaixo, o Pedro o seguiu.

             E foram andando à toa, devagarinho, costeando a margem da caatinga.

             (...)

             De repente, um bé!,agudo e longo, estridulou na calma.

             E uma cabra ruiva, nambi, de focinho quase preto, estendeu a cabeça por entre a orla de galhos secos do caminho, aguçando os rudimentos de orelha, evidentemente procurando ouvir, naquela distensão de sentidos, uma longínqua resposta a seu apelo.

            Chico Bento, perto, olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados.

            O animal soltou novamente o seu clamor aflito.

            Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo.

             E de súbito em três pancadas secas, rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entonteceu, amunhecou, e caiu em cheio por terra.

            Chico Bento tirou do cinto a faca, que de tão velha e tão gasta nunca achara quem lhe desse um tostão por ela. Abriu no animal um corte que foi de debaixo da boca até separar ao meio o úbere branco de tetas secas, escorridas.

            Rapidamente iniciou a esfolação. A faca afiada corria entre a carne e o couro. Na pressa, arrancava aqui pedaços de lombo, afinava ali a pele, deixando-a quase transparente.

            Mas Chico Bento cortava, cortava sempre, com um movimento febril de mãos, enquanto Pedro, comovido e ansioso, ia segurando o couro descarnado.

            Afinal, toda a pele destacada estirou-se no chão.

            E o vaqueiro, batendo com o cacete no cabo da faca, abriu ao meio a criação morta.

            Mas Pedro, que fitava a estrada, o interrompeu:

             - Olha, pai!

            Um homem de mescla azul vinha para eles em grandes passadas. Agitava os braços em fúria, aos berros:

            - Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado!

            Chico Bento, tonto, desnorteado, deixou a faca cair e, ainda de cócoras, tartamudeava explicações confusas.

            O homem avançou, arrebatou-lhe a cabra e procurou enrolá-la no couro.

            Dentro da sua perturbação, Chico Bento compreendeu apenas que lhe tomavam aquela carne em que seus olhos famintos já se regalavam, da qual suas mãos febris já tinham sentido o calor confortante.

            E lhe veio agudamente à lembrança Cordulina exânime na pedra da estrada... o Duquinha tão morto que já nem chorava...

             Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:

            - Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! já caíram com a fome!...

            - Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha!

            A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela palavra.

             Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica.

             E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as para o vaqueiro:

            - Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!...

             A faca brilhava no chão, ainda ensanguentada, e atraiu os olhos de Chico Bento.

            Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa, mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.

            O homem, sem se importar com o sangue, pusera no ombro o animal sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa cujo telhado vermelhava, lá além.

             Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que ficara no chão e correu para a mãe.

            Chico Bento ainda esteve uns momentos na mesma postura, ajoelhado.

            E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na boca um gosto amargo de vida.

                                                             (O Quinze, Rachel de Queiroz)

1. Chico Bento e sua família são retirantes. Qual é a condição física deles no momento retratado pelo texto? Comprove sua resposta com trechos do texto.

Eles estavam degradados fisicamente, conforme comprovam os trechos “Cordulina, que vinha quase cambaleando”, ‘O Duquinha, também só osso e pele”.

2. Chico Bento, antes da seca, não era vagabundo nem bandido; era um trabalhador rural. Levante hipóteses:

a) Como deve ter se sentido ao ser xingado pelo proprietário da cabra?

Deve ter se sentido humilhado, atingido moralmente, pois não era ladrão; roubara por necessidade.

b) Por que não reagiu aos insultos?

Por reconhecer as razões do homem e, talvez, por pensar na família.

3. Ao ver que sua presa seria levada, Chico Bento chegou a sentir vontade de lutar por ela com sua faca, “mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo”. Embora esse seja apenas um fragmento da obra, é possível extrair algumas conclusões importantes desse fato.

a) O sertanejo, no texto, é visto como um ser resignado à sua condição ou como um ser transformador, responsável por seus próprios destinos?

Resignado. Exausto e desesperançoso, Chico Bento sente-se sem ânimo para lutar contra sua sorte.

b) Nesse fragmento, como é vista a condição de miséria e até de eventual violência (que acabou não se concretizando) em que vivem as personagens: como fatalidade ou como resultado de políticas governamentais ou de relações sociais inadequadas?

Como fatalidade; no episódio não há nenhuma referência a fatores de ordem social, também responsáveis pela condição das personagens.

4. O Quinze é um bom exemplo de como os romancistas da década de 1930 lidam com a linguagem literária. Observe a linguagem empregada no texto quanto a: vocabulário (mais culto ou mais popular, regionalismos), construções sintáticas (mais prolixas ou mais próximas da fala), períodos (longos ou curtos), etc. Em seguida, caracterize-a.

A linguagem é culta, porém direta, com vocabulário acessível, por vezes incluindo algum termo regional. Os períodos são curtos e buscam maior proximidade com a linguagem oral.

 

        BONS ESTUDOS!

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