O
episódio a ser lido retrata as dificuldades de Chico Bento e sua família
durante a viagem de retirada.
Eles tinham saído na véspera, de
manhã, da Canoa.
Eram duas horas da tarde.
Cordulina, que vinha quase
cambaleando, sentou-se numa pedra e falou, numa voz quebrada e penosa:
- Chico, eu não posso mais... Acho até que
vou morrer. Dá-me aquela zoeira na cabeça!
Chico Bento olhou dolorosamente a
mulher. O cabelo, em falripas sujas, como que gasto, acabado, caía, por cima
do rosto, envesgando os olhos, roçando na boca. A pele, empretecida como uma
casca, pregueava nos braços e nos peitos, que o casaco e a camisa rasgada
descobriam.
(...)
No colo da mulher, o Duquinha,
também só osso e pele, levava, com um gemido abafado, a mãozinha imunda, de
dedos ressequidos, aos pobres olhos doentes.
E com a outra tateava o peito da mãe, mas num
movimento tão fraco e tão triste que era mais uma tentativa do que um gesto.
Lentamente o vaqueiro voltou as
costas; cabisbaixo, o Pedro o seguiu.
E foram andando à toa, devagarinho, costeando
a margem da caatinga.
(...)
De repente, um bé!,agudo e longo, estridulou
na calma.
E uma cabra ruiva, nambi, de focinho quase
preto, estendeu a cabeça por entre a orla de galhos secos do caminho,
aguçando os rudimentos de orelha, evidentemente procurando ouvir, naquela
distensão de sentidos, uma longínqua resposta a seu apelo.
Chico Bento, perto, olhava-a, com as
mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados.
O animal soltou novamente o seu
clamor aflito.
Cauteloso, o vaqueiro avançou um
passo.
E de súbito em três pancadas secas,
rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entonteceu, amunhecou, e caiu em
cheio por terra.
Chico
Bento tirou do cinto a faca, que de tão velha e tão gasta nunca achara quem
lhe desse um tostão por ela. Abriu no animal um corte que foi de debaixo da
boca até separar ao meio o úbere branco de tetas secas, escorridas.
Rapidamente iniciou a esfolação. A
faca afiada corria entre a carne e o couro. Na pressa, arrancava aqui pedaços
de lombo, afinava ali a pele, deixando-a quase transparente.
Mas Chico Bento cortava, cortava
sempre, com um movimento febril de mãos, enquanto Pedro, comovido e ansioso, ia
segurando o couro descarnado.
Afinal, toda a pele destacada
estirou-se no chão.
E o vaqueiro, batendo com o cacete
no cabo da faca, abriu ao meio a criação morta.
Mas Pedro, que fitava a estrada, o
interrompeu:
- Olha, pai!
Um homem de mescla azul vinha para
eles em grandes passadas. Agitava os braços em fúria, aos berros:
- Cachorro! Ladrão! Matar minha
cabrinha! Desgraçado!
Chico Bento, tonto, desnorteado,
deixou a faca cair e, ainda de cócoras, tartamudeava explicações confusas.
O homem avançou, arrebatou-lhe a
cabra e procurou enrolá-la no couro.
Dentro da sua perturbação, Chico
Bento compreendeu apenas que lhe tomavam aquela carne em que seus olhos
famintos já se regalavam, da qual suas mãos febris já tinham sentido o calor
confortante.
E lhe veio agudamente à lembrança
Cordulina exânime na pedra da estrada... o Duquinha tão morto que já nem
chorava...
Caindo quase de joelhos, com os olhos
vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de
mãos juntas:
- Meu senhor, pelo amor de Deus! Me
deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher
mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! já caíram com a fome!...
- Não dou nada! Ladrão!
Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha!
A energia abatida do vaqueiro não
se estimulou nem mesmo diante daquela palavra.
Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma
atitude de súplica.
E o homem disse afinal, num gesto brusco,
arrancando as tripas da criação e atirando-as para o vaqueiro:
- Tome! Só se for isto! A um diabo
que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!...
A faca brilhava no chão, ainda ensanguentada,
e atraiu os olhos de Chico Bento.
Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e
ir disputar a presa, mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a
mão, faltou-lhe o ânimo.
O homem, sem se importar com o
sangue, pusera no ombro o animal sumariamente envolvido no couro e marchava
para a casa cujo telhado vermelhava, lá além.
Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que
ficara no chão e correu para a mãe.
Chico Bento ainda esteve uns
momentos na mesma postura, ajoelhado.
E
antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na boca
um gosto amargo de vida.
(O
Quinze, Rachel de Queiroz)
1.
Chico Bento e sua família são retirantes. Qual é a condição física deles no
momento retratado pelo texto? Comprove sua resposta com trechos do texto.
Eles estavam degradados fisicamente,
conforme comprovam os trechos “Cordulina, que vinha quase cambaleando”, ‘O
Duquinha, também só osso e pele”.
2.
Chico Bento, antes da seca, não era vagabundo nem bandido; era um trabalhador
rural. Levante hipóteses:
a)
Como deve ter se sentido ao ser xingado pelo proprietário da cabra?
Deve ter se sentido humilhado, atingido
moralmente, pois não era ladrão; roubara por necessidade.
b)
Por que não reagiu aos insultos?
Por reconhecer as razões do homem e,
talvez, por pensar na família.
3.
Ao ver que sua presa seria levada, Chico Bento chegou a sentir vontade de lutar
por ela com sua faca, “mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a
mão, faltou-lhe o ânimo”. Embora esse seja apenas um fragmento da obra, é
possível extrair algumas conclusões importantes desse fato.
a)
O sertanejo, no texto, é visto como um ser resignado à sua condição ou como um
ser transformador, responsável por seus próprios destinos?
Resignado. Exausto e desesperançoso,
Chico Bento sente-se sem ânimo para lutar contra sua sorte.
b)
Nesse fragmento, como é vista a condição de miséria e até de eventual violência
(que acabou não se concretizando) em que vivem as personagens: como fatalidade
ou como resultado de políticas governamentais ou de relações sociais
inadequadas?
Como fatalidade; no episódio não há
nenhuma referência a fatores de ordem social, também responsáveis pela condição
das personagens.
4. O Quinze é um bom exemplo de como os
romancistas da década de 1930 lidam com a linguagem literária. Observe a
linguagem empregada no texto quanto a: vocabulário (mais culto ou mais popular,
regionalismos), construções sintáticas (mais prolixas ou mais próximas da
fala), períodos (longos ou curtos), etc. Em seguida, caracterize-a.
A linguagem é culta, porém direta, com
vocabulário acessível, por vezes incluindo algum termo regional. Os períodos
são curtos e buscam maior proximidade com a linguagem oral.
BONS ESTUDOS!
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