O poema a seguir integra a obra Libertinagem, na qual Manuel Bandeira incorpora vários temas ligados à cultura popular e ao folclore. O poema, ao mesmo tempo que tematiza a infância, faz uma descrição da cidade de Recife no fim do século XIX.
Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias
Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de
chicote-queimado e partia as vidraças
[da casa de Dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o
pincené na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada
com cadeiras, mexericos,
[ namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A
distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São
José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia
ir ver o fogo
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha
infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de
Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores
destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os
caboclos destemidos em jangadas
[ de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a
passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a
preta das bananas com o
[ xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era
cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos
livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do
Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não
entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avó morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como
a casa de meu avô.
1. Na
1ª estrofe do poema, o eu lírico delimita o Recife que evoca. Não é o Recife
histórico nem o Recife turístico ou cultural.
a) Qual
é o Recife que ele evoca? Destaque um verso que justifique sua resposta.
É o Recife
que habita a sua memória: “Recife da minha infância”.
b) O
retrato do Recife evocado é feito, portanto, de modo objetivo ou subjetivo?
De modo
subjetivo.
2.
Observe estes versos do poema:
“Uma
pessoa grande dizia: / Fogo em Santo Antônio!”
“(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de
Tal)”
Com
base nesses versos, responda: O eu lírico, ao evocar o passado, coloca-se no
texto como adulto ou como criança? Justifique.
Há uma
mistura de perspectiva: no primeiro e segundo versos, o eu lírico revive cenas
do passado, como se fosse criança outra vez; no terceiro verso, deixa
transparecer a visão crítica do adulto.
3.
Procurando dessacralizar a poesia, os modernistas aproximam-na das coisas
simples, como o cotidiano e a cultura popular. Identifique no texto o
aproveitamento desses elementos.
As
brincadeiras de roda com suas cantigas infantis, os pregões dos vendedores, as
crenças e as festas populares, os nomes de ruas, etc.
4. Manuel
Bandeira nunca aderiu às novidades modernistas como modismo. Ao contrário,
empregava-as com critério, sabendo extrair efeitos delas. Observe a
irregularidade métrica e a pontuação destes versos:
“Os homens
punham o chapéu saíam fumando”
“Cheia! As cheias!
Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu”
Buscando
estabelecer relações entre a forma e o conteúdo, responda:
a) Por
que a ausência de pontuação torna o sentido desses dois versos mais preciso?
No primeiro
verso, a ausência de pontuação sugere a rapidez das ações; no segundo verso, a
violência das águas durante as cheias.
b)
Observe o tamanho do segundo desses versos. Relacionando-o com o conteúdo do
verso (as cheias), o que justificaria esse tamanho?
A
enumeração caótica, num único verso, dos vários elementos arrastados pela água imita
formalmente o caos promovido pelas cheias, que arrastam tudo de uma só vez.
5.
Assim como Mário e Oswald, Bandeira também se preocupou com a necessidade de
criar uma nova língua literária. De acordo com o texto:
a) Qual
é a “língua certa do povo”?
É a língua
espontânea e natural falada pelo povo.
b) A
quem possivelmente se refere o pronome nós
dos versos “Ao passo que nós / o que fazemos”?
Às pessoas
cultas: escritores, leitores, professores, etc.
c) É
possível afirmar que Bandeira pôs em prática no poema essa concepção de língua?
Justifique com palavras ou expressões do texto.
Sim, pois o
poema apresenta vocabulário e construções sintáticas simples, além de empregar palavras
do uso popular, como “midubim” e “macaquear”.
6.
Responda:
a) Por
que o eu lírico afirma “Meu avô morto / Recife morto [...]”?
Porque com
a morte do avô – uma das figuras centrais da mitologia da infância do poeta -,
ocorre também a morte do Recife que vivia na memória do eu lírico.
b) Que tipo de sentimento revela o eu lírico em
relação ao Recife de sua infância?
Melancolia,
nostalgia, tristeza.
BONS ESTUDOS!
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