quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Evocação do Recife, de Manuel Bandeira: exercícios resolvidos

 


    O poema a seguir integra a obra Libertinagem, na qual Manuel Bandeira incorpora vários temas ligados à cultura popular e ao folclore. O poema, ao mesmo tempo que tematiza a infância, faz uma descrição da cidade de Recife no fim do século XIX.

Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças 

                                                [da casa   de Dona Aninha  Viegas                                                                                                                                                     
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincené na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,

                                                    [ namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)

De repente
nos longes da noite
um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas

                                                          [ de bananeiras

Novenas
Cavalhadas

Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe
— Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o

                              [ xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avó morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

 

1. Na 1ª estrofe do poema, o eu lírico delimita o Recife que evoca. Não é o Recife histórico nem o Recife turístico ou cultural.

a) Qual é o Recife que ele evoca? Destaque um verso que justifique sua resposta.

É o Recife que habita a sua memória: “Recife da minha infância”.

b) O retrato do Recife evocado é feito, portanto, de modo objetivo ou subjetivo?

De modo subjetivo.

2. Observe estes versos do poema:

“Uma pessoa grande dizia: / Fogo em Santo Antônio!”
“(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)”

Com base nesses versos, responda: O eu lírico, ao evocar o passado, coloca-se no texto como adulto ou como criança? Justifique.

Há uma mistura de perspectiva: no primeiro e segundo versos, o eu lírico revive cenas do passado, como se fosse criança outra vez; no terceiro verso, deixa transparecer a visão crítica do adulto.

3. Procurando dessacralizar a poesia, os modernistas aproximam-na das coisas simples, como o cotidiano e a cultura popular. Identifique no texto o aproveitamento desses elementos.

As brincadeiras de roda com suas cantigas infantis, os pregões dos vendedores, as crenças e as festas populares, os nomes de ruas, etc.

4. Manuel Bandeira nunca aderiu às novidades modernistas como modismo. Ao contrário, empregava-as com critério, sabendo extrair efeitos delas. Observe a irregularidade métrica e a pontuação destes versos:

“Os homens punham o chapéu saíam fumando”

“Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu”

Buscando estabelecer relações entre a forma e o conteúdo, responda:

a) Por que a ausência de pontuação torna o sentido desses dois versos mais preciso?

No primeiro verso, a ausência de pontuação sugere a rapidez das ações; no segundo verso, a violência das águas durante as cheias.

b) Observe o tamanho do segundo desses versos. Relacionando-o com o conteúdo do verso (as cheias), o que justificaria esse tamanho?

A enumeração caótica, num único verso, dos vários elementos arrastados pela água imita formalmente o caos promovido pelas cheias, que arrastam tudo de uma só vez.

5. Assim como Mário e Oswald, Bandeira também se preocupou com a necessidade de criar uma nova língua literária. De acordo com o texto:

a) Qual é a “língua certa do povo”?

É a língua espontânea e natural falada pelo povo.

b) A quem possivelmente se refere o pronome nós dos versos “Ao passo que nós / o que fazemos”?

Às pessoas cultas: escritores, leitores, professores, etc.

c) É possível afirmar que Bandeira pôs em prática no poema essa concepção de língua? Justifique com palavras ou expressões do texto.

Sim, pois o poema apresenta vocabulário e construções sintáticas simples, além de empregar palavras do uso popular, como “midubim” e “macaquear”.

6. Responda:

a) Por que o eu lírico afirma “Meu avô morto / Recife morto [...]”?

Porque com a morte do avô – uma das figuras centrais da mitologia da infância do poeta -, ocorre também a morte do Recife que vivia na memória do eu lírico.

b) Que tipo de sentimento revela o eu lírico em relação ao Recife de sua infância?
Melancolia, nostalgia, tristeza.

 

BONS ESTUDOS!


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