terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Material para a disciplina de Literatura Brasileira (do Romantismo ao Simbolismo)



FACULDADE KURIOS  /  FAK / ANGICAL-PI
PROFESSORA ESPECIALISTA: ÉLLIDA VERIDIANE
DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA I 
CURSO: 2ª LICENCIATURA / LETRAS PORTUGUÊS








                                                              ROMANTISMO (POESIA E PROSA)
                                                              REALISMO/NATURALISMO
                                                              PARNASIANISMO
                                                             SIMBOLISMO













                                                                  


Romantismo

romantismo foi um movimento artísticopolítico e filosófico surgido nas últimas décadas do século XVIII na Europa que durou por grande parte do século XIX. Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária ao racionalismo e ao iluminismo e buscou um nacionalismo que viria a consolidar os estados nacionais na Europa.
Inicialmente apenas uma atitude, um estado de espírito, o romantismo toma mais tarde a forma de um movimento, e o espírito romântico passa a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo. Os autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo. Se o século XVIII foi marcado pela objetividade, pelo iluminismo e pela razão, o início do século XIX seria marcado pelo lirismo, pela subjetividade, pela emoção e pelo eu.
                                                                       https://pt.wikipedia.org/wiki/Romantismo

Características

POESIA ROMÂNTICA BRASILEIRA
·         Afirmação da nacionalidade brasileira;
·         Influência da literatura estrangeira em razão da chegada da corte portuguesa ao Brasil e do maior contato com artistas estrangeiros;
·         Exaltação do exotismo da paisagem e dos habitantes primitivos do Brasil.

Primeira geração romântica brasileira – exaltação dos indígenas e do exotismo da paisagem (idealizados). Principais poetas: Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães.
Segunda geração romântica brasileira – Ultrarromantismo, Mal do Século, ou Byronismo – geração de poetas ultrarromânticos, influenciados pelas obras de Lord Byron. Principais poetas: Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Fagundes Varela.
Terceira geração romântica brasileira – poesia de combate social, hugoana, ou condoreira. Principal poeta: Castro Alves.
                                                      
LEITURA
                                         “I-Juca-Pirama”



CANTO IV

Meu canto de morte
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes — escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.

Aos golpes do inimigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mim!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!

O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu'ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja, — dizei!

Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? — Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

(Poemas de Gonçalves Dias. Seleção de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p. 119-122.)
             



CANTO VIII




" Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."

 DIAS, Gonçalves. Poesias. Rio de Janeiro: Agir, 1969. (Nossos Clássicos)





                               [...]
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos? [...]
                                                            Álvares de Azevedo. Lira dos vinte anos.


O texto que segue, a parte IV de "O navio negreiro", é a descrição do que se via no interior de um navio negreiro. Perceba a capacidade de Castro Alves em nos fazer ver a cena, como se estivéssemos num teatro.




Era um sonho dantesco... O tombadilho,
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente                                     
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra.

E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!..



              
açoite: chicote.

arquejar: ofegar.
dantesco: relativo às cenas de horríveis narradas por Dante Alighieri em sua obra Divina comédia, na parte em que descreve o inferno.
luzernas: clarões.
tombadilho: alojamento do navio.
turbilhão: redemoinho.
vãs: inúteis, sem valor.
                                               http://tapeteliterario.blogspot.com.br/

A prosa romântica brasileira pode ser dividida em:
·         Prosa social-urbana: tem como cenário os centros urbanos, retratando o cotidiano burguês.
·         Prosa indianista: apresenta o indígena como protagonista, retratando com fortíssimos traços éticos e morais do cavaleiro medieval europeu.
·         Prosa regionalista: busca retratar usos, costumes, paisagens e, em alguns casos, os falares típicos de determinada região.
·         Prosa histórica: retrata o passado histórico brasileiro, buscando resgatar as origens da nação.

Principais autores: José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Visconde de Taunay, Bernardo Guimarães, Franklin Távora e Martins Pena.

LEITURA

Senhora ( José de Alencar)
                     Primeira parte – O preço
 
                                  Capítulo XIII
[...]
— Como tardaste, Aurélia! disse ele queixoso.
— Tinha um voto a cumprir; quis emancipar-me logo de uma vez para pertencer toda a meu único senhor; respondeu a moça galanteando.
— Não me mates de felicidade, Aurélia! Que posso eu mais desejar neste mundo do que viver a teus pés, adorando-te, pois que és a minha divindade na terra.
Seixas ajoelhou aos pés da noiva; tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração, que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar do filho.
A moça com o talhe languidamente recostado no espaldar da cadeira, a fronte reclinada, os olhos coalhados em uma ternura maviosa, escutava as falas de seu marido; toda ela se embebia dos eflúvios de amor, de que ele a repassava com a palavra ardente, o olhar rendido, e o gesto apaixonado.
— É então verdade que me ama?
— Pois duvida, Aurélia?
— E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos vimos?
— Não lho disse já?
— Então nunca amou a outra?
— Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a face de outra mulher, que não fosse minha mãe. O meu primeiro beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para ti...
Soerguendo-se para alcançar-lhe a face, não viu Seixas a súbita mutação que se havia operado na fisionomia de sua noiva.
Aurélia estava lívida, e a sua beleza, radiante há pouco, se marmorizara.
— Ou de outra mais rica!... disse ela retraindo-se para fugir ao beijo do marido, e afastando-o com a ponta dos dedos.
A voz da moça tomara o timbre cristalino, eco da rispidez e aspereza do sentimento que lhe sublevava o seio, e que parecia ringir-lhe nos lábios como aço.
— Aurélia! Que significa isto?
— Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.
— Vendido! exclamou Seixas ferido dentro d’alma.
— Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica; sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento.
Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um papel, no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele passada ao Lemos.
Não se pode exprimir o sarcasmo que salpicava dos lábios da moça; nem a indignação que vazava dessa alma profundamente revolta, no olhar implácavel com que ela flagelava o semblante do marido.
Seixas, trespassado pelo cruel insulto, arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de humilhação, a princípio ficara atônito. Depois quando os assomos da irritação vinham sublevando-lhe a alma, recalcou-os esse poderoso sentimento do respeito à mulher, que raro abandona o homem de fina educação.
Penetrado da impossibilidade de retribuir o ultraje à senhora a quem havia amado, escutava imóvel, cogitando no que lhe cumpria fazer; se matá-la a ela, matar-se a si, ou matar a ambos.
Aurélia como se lhe adivinhasse o pensamento, esteve por algum tempo afrontando-o com inexorável desprezo.
— Agora, meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la; e peço-lhe que me não interrompa. Deixe-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há um ano a está amargurando e consumindo.
A moça apontou a Seixas uma cadeira próxima.
— Sente-se, meu marido.
Com que tom acerbo e excruciante lançou a moça esta frase meu marido, que nos seus lábios ríspidos acerava-se como um dardo ervado de cáustica ironia!
Seixas sentou-se.
Dominava-o a estranha fascinação dessa mulher, e ainda mais a situação incrível a que fora arrastado.


                             Segunda parte – Quitação
                                           Capítulo IX        

Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.
Os dois atores ainda conservam a mesma posição em que os deixamos. Fernando Seixas obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se, e fitava na moça um olhar estupefato. A moça arrastou uma cadeira e colocou-se em face do marido, cujas faces crestava o seu hálito abrasado.
— Não careço dizer-lhe que amor foi o meu, e que adoração lhe votou minha alma desde o primeiro momento em que o encontrei. Sabe o senhor, e se o ignora, sua presença aqui nesta ocasião já lhe revelou. Para que uma mulher sacrifique assim todo seu futuro, como eu fiz, é preciso que a existência se tornasse para ela um deserto, onde não resta senão o cadáver do homem que a assolou para sempre.
Aurélia calcou a mão sobre o seio para comprimir a emoção que a ia dominando.
— O senhor não retribuiu meu amor e nem o compreendeu. Supôs que eu lhe dava apenas a preferência entre outros namorados, e o escolhia para herói dos meus romances, até aparecer algum casamento, que o senhor, moço honesto, estimaria para colher à sombra o fruto de suas flores poéticas. Bem vê que eu o distingo dos outros, que ofereciam brutalmente, mas com franqueza e sem rebuço, a perdição e a vergonha.
Seixas abaixou a cabeça.
— Conheci que não amava-me, como eu desejava e merecia ser amada. Mas não era sua a culpa e só minha que não soube inspirar-lhe a paixão, que eu sentia. Mais tarde, o senhor retirou-me essa mesma afeição com que me consolava e transportou-a para outra, em quem não podia encontrar o que eu lhe dera, um coração virgem e cheio de paixão com que o adorava. Entretanto, ainda tive forças para perdoar-lhe e amá-lo.
A moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:
— Mas o senhor não me abandonou pelo amor de Adelaide e sim por seu dote, um mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito de fazer, e que jamais lhe podia perdoar! Desprezasse-me embora, mas não descesse da altura em que o havia colocado dentro de minha alma. Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal, e atirou-o no pó. Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime; a sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.
Seixas, que tinha curvado a fronte, ergueu-a de novo, e fitou os olhos na moça. Conservava ainda as feições contraídas, e gotas de suor borbulhavam na raiz de seus belos cabelos negros.
— A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas. Quando a recebi, já conhecia o mundo e suas misérias; já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa riqueza servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste mundo. Mostrar a esse homem que não me soube compreender, que mulher o amava, e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; consinta-me que eu o ame. Essa última consolação, o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração, era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não desespere, o suplício não pode ser longo: este constante martírio a que estamos condenados acabará por extinguir-me o último alento; o senhor ficará livre e rico.
Proferidas as últimas palavras com um acento de indefinível irrisão, a moça tirou o papel que trazia passado à cinta, e abriu-o diante dos olhos de Seixas. Era um cheque de oitenta contos sobre o Banco do Brasil.
— É tempo de concluir o mercado. Dos cem contos de réis, em que o senhor avaliou-se já recebeu vinte; aqui tem os oitenta que faltavam. Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este o nome de convenção.
A moça estendeu o papel que sua mão crispada amarrotava convulsamente. Seixas permaneceu imóvel como uma estátua; apenas duas plicas profundas sulcaram-lhe as faces desde o canto dos olhos até à comissura dos lábios.
Afinal o papel escapou-se dos dedos trêmulos da moça e caiu sobre o tapete aos pés de Fernando.
Seguiu-se um momento de silêncio ou antes de estupor. Aurélia irritava-se contra a invencível mudez de Seixas, e talvez a atribuía a uma cínica insensibilidade moral. Pensava exacerbar os nobres estímulos de um homem ainda capaz de reabilitar-se da fragilidade a que fora arrastado, e achava um indivíduo tão embotado já em seu pudor que não se revoltava contra a maior das humilhações.
Aurélia soltou dos lábios um estrídulo, antes do que um sorriso.
— Agora podemos continuar a nossa comédia, para divertir-nos. É melhor do que estarmos aqui mudos em face um do outro. Tome a sua posição, meu marido; ajoelhe-se aqui a meus pés, e venha dar-me seu primeiro beijo de amor... Porque o senhor ama-me, não é verdade, e nunca amou outra mulher senão a mim?...
Seixas ergueu-se; sua voz afinal desprendeu-se dos lábios calma, porém fremente:
— Não; não a amo.
— Ah!
— É verdade que a amei; mas a senhora acaba de esmagar a seus pés esse amor; aí fica ele para sempre sepultado na abjeção a que o arremessou. Eu só a amaria agora, se a quisesse insultar; pois que maior afronta pode fazer a uma senhora um miserável, do que marcando-a com o estigma de sua paixão. Mas fique tranquila; ainda quando me dominasse a cólera, que não sinto, há uma vingança que não teria forças para exercer; é essa de amá-la.
Aurélia ergueu-se impetuosamente.
— Então enganei-me? exclamou a moça com estranho arrebatamento. O senhor ama-me sinceramente e não se casou comigo por interesse?
Seixas demorou um instante o olhar no semblante da moça, que estava suspensa de seus lábios, para beber-lhe as palavras:
— Não, senhora, não enganou-se, disse afinal com o mesmo tom frio e inflexível. Vendi-me; pertenço-lhe. A senhora teve o mau gosto de comprar um marido aviltado; aqui o tem como o desejou. Podia ter feito de um caráter, talvez gasto pela educação, um homem de bem, que se enobrecesse com sua afeição; preferiu um escravo branco; estava em seu direito, pagava com seu dinheiro, e pagava generosamente. Esse escravo aqui o tem; é seu marido, porém nada mais do que seu marido!
O rubor afogueou as faces de Aurélia, ouvindo essa palavra acentuada pelo sarcasmo de Seixas.
— Ajustei-me por cem contos de réis; continuou Fernando; foi pouco, mas o mercado está concluído. Recebi como sinal da compra vinte contos de réis; falta-me arrecadar o resto do preço, que a senhora acaba de pagar-me.
O moço curvou-se para apanhar o cheque. Leu com atenção o algarismo, e dobrando lentamente o papel, guardou-o no bolso do rico chambre de gorgorão azul.
— Quer que lhe passe um recibo?... Não; confia na minha palavra. Não é seguro. Enfim estou pago. O escravo entra em serviço.
Soltando estas palavras com pasmosa volubilidade, que parecia indicar o requinte da impudência, Fernando sentou-se outra vez defronte da mulher.
— Espero suas ordens.
Aurélia, que até esse momento escutara com ansiedade, perscrutando sôfrega no semblante do marido e através de suas palavras um sintoma de indignação, disfarçada por aquele desgarro, cobriu com as mãos o rosto abrasado de vergonha.
— Meu Deus!
A moça tragou o soluço que lhe sublevava o seio, e refugiando-se no outro canto do sofá, como se receasse o contágio do homem a quem se unira pela eternidade, abismou-se na voragem de sua consciência revolta.
Após longo trato, Aurélia, como se despertasse de um pesadelo, ergueu os olhos e encontrando de novo o semblante de Seixas que a observava com um sossego escarninho, teve um enérgico assomo de repulsão, ou antes de asco.
— Minha presença a está incomodando? Porque assim o quer. Não é, senhora? Não tem direito de mandar? Ordene, que eu me retiro.
— Oh! sim, deixe-me! exclamou Aurélia. O senhor me causa horror.
— Devia examinar o objeto que comprava, para não arrepender-se!
Seixas atravessou a câmara nupcial, e desapareceu por essa porta que uma hora antes ele entrara cheio de vida e de felicidade, palpitante de júbilo e emoção, e que repassava levando a morte na alma.
Quando Aurélia ouviu o som dos seus passos que afastavam-se pelo corredor, precipitou-se com um arremesso de terror e deu volta à chave. Depois quis fugir, mas arrastou uns passos trôpegos, e caiu sem sentidos sobre o tapete.


Iracema: a virgem dos lábios de mel (José de Alencar)
                                    Capítulo II

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.

Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.

De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d'alma que da ferida.

O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.

A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.

O guerreiro falou:

—Quebras comigo a flecha da paz?

—Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu ?

—Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.

—Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.



                         REALISMO / NATURALISMO NO BRASIL

O Realismo e O Naturalismo brasileiros tiveram início, oficialmente, em 1881: o primeiro com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e o segundo com O Mulato, de Aluísio Azevedo publicado quando o autor tinha apenas 20 anos.

Machado de Assis
·         Microrrealismo
·         Denúncia da mediocridade humana
·         Considerações filosóficas sobre a natureza humana
·         Análise psicológica
·         Pessimismo niilista
·         Anulação da existência
·         Digressão, cronologia não linear
·         Capítulos curtos
·         Conversação com o leitor
·         Anticlímax
Aluísio Azevedo
·         Maior expressão do Naturalismo brasileiro
·         Principal obra: O cortiço
·         Determinismo científico (universo conectado por relações de causa e efeito)
·         Positivismo (defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro.)
·         Espaços degradados
·         Romance de tese ( Isso fica claro em romances e contos, nos quais as personagens são o resultado da sua descendência e das condições em que vivem. Condicionadas pela situação.)
·         Gosto pelo coletivo e pelas aglomerações humanas
·         Predomínio do instinto sobre a razão
·         Focalização dos aspectos desagradáveis da natureza humana

Raul Pompeia

·         Principal obra: O Ateneu
·         Influência de vários estilos: Realismo, Naturalismo, Impressionismo e Expressionismo
·         Crítica à sociedade e ao sistema educacional falido
·         Determinismo  (Acreditava-se que os acontecimentos e atitudes eram decorrentes ou condicionados pelo meio físico.)
·         Gosto pelo coletivo
·         Ateneu (colégio) = microcosmo (pequeno universo)
·         Obra de tons autobiográficos

LEITURA
Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis)


                      
CAPÍTULO I

Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— Morto! morto! dizia consigo.
É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPÍTULO II

O emplasto
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis.
Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
CAPÍTULO IV
                                                              A ideia fixa
A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira.
Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, — ou "uma abóbora" como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o "abóbora" de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tomando à ideia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos; a ideia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, — fórmula Suetônio.
Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo-feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.
CAPÍTULO LV
O velho diálogo de Adão e Eva
Brás Cubas...?
Virgília......
Brás Cubas.............................
. . . . . . . . .
Virgília..................!
Brás Cubas...............
Virgília.......................................................................................................... .................................................................. ? ...................................................................
....................................................................................................................................
Brás Cubas.....................
Virgília.......
Brás Cubas
.............................................................................................................................................. .........................................................................................!...........................!...........................................................!
Virgília.......................................?
Brás Cubas.....................!
Virgília.....................!
     O cortiço (Aluísio Azevedo)
                                      Capítulo III
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.
Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas; fazendo compras.
[...]

   O Ateneu (Raul Pompeia)
                                     Capítulo I

"Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta." Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
    [...]

                            PARNASIANISMO

parnasianismo é uma escola literária ou um movimento literário essencialmente poético, contemporâneo do Realismo-Naturalismo. Um estilo de época que se desenvolveu na poesia a partir de 1850, na França, com o objetivo de retomar a cultura clássica.
Movimento literário que se originou na França, representou na poesia o espírito positivista e científico da época, surgindo no século XIX em oposição ao romantismo.
Nasceu com a publicação de uma série de poesias, precedendo de algumas décadas o simbolismo uma vez que os seus autores procuravam recuperar os valores estéticos da antiguidade clássica. O seu nome vem do Monte Parnaso, a montanha que, na mitologia grega era consagrada a Apolo e às musas.

Principais características do Parnasianismo no Brasil:
·         Retorno ao mundo grego clássico;
·         Gosto pela descrição;
·         Retomada de valores clássicos: razão, materialismo, universalismo, temas mitológicos, equilíbrio, harmonia;
·         “Arte pela arte”: a arte visa ao belo;
·         Grande preocupação formal: rima e métrica perfeitas; preciosismo vocabular;
·         Impessoalidade;
·         Preferência por sonetos.
Principais autores:  Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira (Trindade Parnasiana), além de Vicente de Carvalho.

                     Profissão de fé
                                                 (Olavo Bilac)
[...]



Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,
A ideia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,
Por tão subtil,
Possa o lavor lembrar de um vaso
De Becerril.

E horas sem conto passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento.

Porque o escrever - tanta perícia,
Tanta requer,
Que oficio tal... nem há notícia
De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena Forma!
[...]





Via Láctea (Olavo Bilac)

Soneto XIII

                     
 “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

http://tapeteliterario.blogspot.com.br/2017/06/via-lactea-soneto-xiii-e-nel-mezzo-del.html

Nel mezzo del camin... (Olavo Bilac)

“Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo… Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.”

                         As pombas
                                             ( Raimundo Correia)
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
                                Vaso grego
                                                Alberto de Oliveira
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia
Então, e, ora repleta ora esvazada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse. 
© ALBERTO DE OLIVEIRA 
In Sonetos e poemas, 1886 
           SIMBOLISMO

Simbolismo é um movimento literário da poesia e das outras artes que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao realismo, ao naturalismo e ao positivismo da época. Movido pelos ideais românticos, estendendo suas raízes à literatura, aos palcos teatrais, às artes plásticas. Não sendo considerado uma escola literária, teve suas origens de As Flores do Mal, do poeta Charles Baudelaire.
Principais características do Simbolismo:
·         Simbolismo no Brasil: início em 1893, com Missal e Broquéis, de Cruz e Sousa.
·         Contexto do decadentismo do fim do século XIX.
·         Busca do inconsciente; predomínio da sugestão sobre a descrição; solidão; subjetividade; hermetismo; imagens noturnas; temática da libertação na morte, na loucura e no sonho; misticismo; inovação na expressividade formal dos poemas, no uso das maiúsculas iniciais, das reticências e de outros recursos gráficos; musicalidade; sinestesia; uso de símbolos para representar impressões subjetivas.
Principais autores no Brasil: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens.
Antífona (Cruz e Sousa)   


Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...


Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.


Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte..



                                                  http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/antifona.htm
Ismália
Alphonsus de Guimaraens




Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...


E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Oliveira, Clenir Bellezi de.  Literatura em contexto: a arte literária luso-brasileira; 1. Ed. São Paulo: FTD, 2012.

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