O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
calha: cano de zinco ou de cobre em que se escoam águas pluviais.
comboio: trem; grupo de carros com o mesmo destino.
ATIVIDADE
1. O poema apresenta como tema a criação artística, desenvolvendo-o em três planos ou em três níveis, demarcados pelas estrofes. De que trata cada uma das estrofes?
A 1ª estrofe trata do poeta e da criação literária; a 2ª , do leitor e de sua relação com o texto literário; e a 3ª, do jogo entre razão e emoção, existente no fenômeno literário.
2. Levando em conta que o poeta é um fingidor, levante hipóteses: Por que, de acordo com a 1ª estrofe, o poeta "chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente"?
Sugestões: 1) No jogo literário, experiência e imaginação se fundem, constituindo uma nova realidade, a do texto. 2) A emoção contida no texto nem sempre corresponde à emoção real; esta pode servir de base para a "emoção fingida", que se torna real no poema.
3. De acordo com a 2ª estrofe:
a) A que dores se refere o texto no verso "Não as duas que ele teve"?
Às duas dores do poeta: a vivida e a fingida.
b) Os leitores não sentem as duas dores do poeta, "Mas só a que eles não têm".
Levante hipóteses: Que dor pode ser essa sentida pelos leitores?
Com uma visão moderna sobre a recepção do texto, Pessoa abre espaço para a imaginação do leitor, que não é visto aqui como elemento passivo no jogo literário, mas como coadjuvante da escritura do texto, pois é ele que atribui o sentido final à sua leitura.
4. Na última estrofe, são aproximados dois elementos que, historicamente, são a base da criação artística em todos os tempos, ora com o predomínio de um, ora com o predomínio de outro.
a) Quais são esses elementos? Razão e emoção.
b) Que importância têm esses elementos no jogo da criação literária?
Historicamente, sempre houve predomínio de um ou de outro. Depreende-se que, para Fernando Pessoa, a criação literária é a confluência da emoção (ligada à experiência), da razão (ligada à consciência e à técnica) e da imaginação.
5. O poema tem como título "Autopsicografia". O termo psicografia significa relação mediúnica estabelecida entre dois seres humanos, um morto e um vivo, sendo este o meio pelo qual aquele se manifesta por escrito; o prefixo auto - significa "por si mesmo". Levando em conta esses dados e considerações sobre realidade, imaginação ou fingimento observadas no poema, dê uma interpretação coerente ao título do poema.
Sugestão: O título sugere que a criação literária parte de um eu (que viveu, sentiu) e transforma a experiência vivida em "experiência fingida", imaginada. Nesse processo de recriação, atuam três elementos: razão, emoção e imaginação. Essas relações, que ocorrem no plano da expressão, se repetem no momento da recepção, da leitura.
Cereja, William Roberto
Português linguagens: volume 3 / William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. - 7. ed. reform. - São Paulo: Saraiva, 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário