Este é um fragmento de um conto de Liev Tolstói, escritor russo que resolveu dar voz a um cavalo... Isso mesmo! Trata-se das memórias de um cavalo que passa longo tempo observando o comportamento das pessoas e os valores do ser humano. Leia-o:
O diabo e outras histórias
[...] Era inverno, época de festas. Não me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro. Fiquei sabendo depois que aquilo acontecera porque o cavalariço estava bêbado. Naquele mesmo dia, o chefe veio à minha baia, deu pela falta de ração e foi-se embora xingando com os piores nomes o cavalariço, que não estava ali. No dia seguinte, acompanhado de um peão, o cavalariço trouxe feno à nossa baia; notei que ele estava especialmente pálido, abatido, tinha nas costas longas algo significativo que despertava piedade. Ele atirou feno por cima da grade, com raiva; eu ia metendo a cabeça em seu ombro, mas ele deu um murro tão dolorido no meu focinho, que me fez saltar pra trás. E ainda por cima chutou-me a barriga com a bota.
- Não fosse esse lazarento, nada disso tinha acontecido.
- Mas o que aconteceu? - perguntou o outro cavalariço.
- Os potros do conde ele não inspeciona, mas este ele examina duas vezes por dia.
- Será que deram o malhado mesmo pra ele?
-Se deram ou venderam, só o diabo sabe. O certo é que você pode até matar de fome todos os cavalos do conde, e nada acontece, mas você se atreva a deixar o potro dele sem ração... "Deita aí", diz ele, e tome chicotada. [...] Ele mesmo contou as chicotadas que me deu, o bárbaro. O general não bate assim, ele deixou as minhas costas em carne viva [...].
Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhões [...], mas naquela época era absolutamente obscuro para mim o significado das palavras "meu", "meu potro", palavras através das quais eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o chefe dos estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum o que significava me chamarem de propriedade de um homem. As palavras "meu cavalo", referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras "minha terra", "meu ar", "minha água”.
No entanto, essas palavras exerciam uma enorme influência sobre mim. Eu não parava de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas palavras. Era o seguinte: os homens não orientam suas
vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencio- nam entre si. Dessas, as que mais consideram são "meu" e "minha", que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa apenas um deles diria "meu". E aquele que diz "meu" para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.
Muitas das pessoas que me chamavam, por exemplo, de "meu cavalo" nunca me montavam; as que o faziam eram outras, completamente diferentes. Também eram bem outras as que me alimentavam. As que cuidavam de mim, mais uma vez, não eram as mesmas que me chamavam "meu cavalo", mas os cocheiros. Os tratadores, estranhos de modo geral. Mais tarde, depois que ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de “meu” não tem nenhum outro fundamento senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade. O homem diz: "minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: "meu bazar", "meu bazar de lãs", por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há no seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de "meus" outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas consiste em lhes causar mal. Existem homens que chamam de “minhas” as suas mulheres ou esposas, mas essas mulheres vivem com outros homens. As pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom, mas a chamar de "minhas" o maior número de coisas. Agora estou convencido de que é nisso que consiste a diferença essencial entre nós e os homens. É por isso que, sem falar das outras vantagens que temos sobre eles, já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas; a vida das pessoas - pelo menos daquelas com as quais convivi - traduz-se em palavras; a nossa, em atos. E eis que foi o chefe dos estábulos que recebeu o direito de me chamar de “meu cavalo"; por isso açoitou o cavalariço. Essa descoberta me deixou profundamente impressionado e [...] levou-me a me tornar o malhado ensimesmado e sério que eu sou.
TOLSTÓI, Liev. O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
GLOSSÁRIO
Cavalariço: indivíduo que cuida de animais em cavalarias; estribeiro.
Ensimesmado: voltado para dentro de si mesmo; concentrado, recolhido.
Lanhão: golpe, ferimento feito com instrumento cortante; ferimento no corpo proveniente do arrancamento de tiras de couro ou de pele; marca de açoite na pele.
CONHECENDO O AUTOR
Liev Nikolaievitch Tolstói (1828-1910)
Escritor russo, era filho de uma importante família ligada aos czares e teve uma vida pessoal cheia de conflitos, dividida entre o pacifismo e o anarquismo. Foi um pensador social e moral e um dos mais relevantes autores da narrativa realista de todos os tempos. En- tre suas obras, destacam-se: Infância (1852), Contos de Sebastopol (1855-1856), Guerra e paz (1865-1869), Anna Karenina (1875-1877), A morte de Ivan Ilitch (1886), A sonata de Kreutzer (1889) e seu último romance, Ressurreição (1899).
POR DENTRO DO TEXTO
1. O primeiro parágrafo do texto situa o leitor. De que maneira isso é feito?
O primeiro parágrafo indica o tempo em que a narrativa se desenrola (''Era inverno, época de festas") e localiza o leitor a respeito de onde ocorreram os fatos, além de explicar em quais condições o cavalo vivia.
2. Que tipo de narrador esse conto apresenta? Quem é ele?
Narrador-personagem. Ele é assumido pela figura de um animal, um cavalo.
3. Leia as informações do quadro.
Em um texto narrativo, o tempo é muito importante, porque situa o leitor, ajudando-o a compreender os fatos. Dessa forma, em narrativas como romances, novelas e contos, há dois tipos fundamentais de tempo: o cronológico e o psicológico.
O tempo cronológico se caracteriza por seguir o ritmo do relógio, a estação do ano, a divisão em dias, o calendário etc. Nesse tipo de tempo, os fatos podem ser apresentados no momento em que acontecem. Veja:
[...] Era inverno, época de festas. Não me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro [...].
[...] No dia seguinte, acompanhado de um peão, o cavalariço trouxe feno à nossa baia [...].
O tempo psicológico não segue uma cronologia, transcorrendo no interior do personagem ou do narrador conforme seu desejo, imaginação, vivências subjetivas, entre outros. É comum, na construção do tempo psicológico, as cenas se passarem na cabeça do personagem ou do narrador como um flashback, ou seja, como uma lembrança, uma recordação. Exemplos:
[...] Eu não parava de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas palavras [...].
[...] Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada [...].
• Indique o tipo de tempo a que se referem as expressões destacadas no trechos extraídos do conto lido.
a) [...] Mais tarde, depois que ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de "meu" não tem nenhum outro fundamento [...].
Tempo psicológico.
b) Naquele mesmo dia, o chefe veio à minha baia, deu pela falta de ração e foi-se embora xingando com os piores nomes o cavalariço [...].
Tempo cronológico.
c) [...] Muitas das pessoas que me chamavam, por exemplo, de "meu cavalo" nunca me montavam
[...]. Tempo psicológico.
4. Releia o trecho a seguir, em que o personagem principal expõe suas ideias.
[...] O homem diz: “minha casa", mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: "meu bazar", "meu bazar de las", por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores las que há em seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de "minha", mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de "meus" outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas consiste em lhes causar mal. [...]
• Indique qual das frases a seguir, retiradas do texto, corresponde à ideia apresentada nesse trecho:
a) As pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom [...].
b) [...] já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas [...].
c) [...] Mais tarde, depois que ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de "meu" não tem nenhum outro fundamento senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade.
5. O que o cavalo pensava a respeito de ter um dono e não ser esse dono o seu cuidador?
O cavalo julgava estranha a maneira como os humanos lidavam com questões de propriedade, pois aquele que o chamava de "meu" não era o mesmo que cuidava dele. Por vezes, não entendia o fato de ser propriedade de alguém que não o alimentava nem montava nele, e isso, para ele, era motivo de decepção.
6. O que o cavalo percebeu sobre o uso que os humanos faziam da palavra "meu"? Que relação ele estabeleceu entre essa palavra e o conceito de felicidade?
Ele percebeu que o uso dessa palavra era atribuído à noção de propriedade e de felicidade, ou seja, era considerado mais feliz aquele que dissesse "meu" para o maior número de coisas.
7. O cavalo conseguia compreender esse tipo de comportamento? Transcreva um trecho que comprove sua resposta.
Não. "Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem
imediata nisso, mas não dei com nada."
8. Que sentido a palavra "meu" tinha para o cavalo?
Para o cavalo, a palavra "meu" só fazia sentido em uma relação próxima, concreta, de afetividade.
9. É possível afirmar que, no texto, o personagem do cavalo foi humanizado? Por quê?
Sim, pois o cavalo apresenta sentimentos, atitudes e reflexões normalmente atribuídos a seres humanos.
10. No conto, há uma inversão entre o que é humano e o que é animal. Explique essa afirmação.
O cavalo, um animal, aparece na história repleto de características que o humanizam, enquanto o ser humano é apresentado de maneira animalizada em consequência do significado que atribui à palavra "meu", do modo como entende o conceito de propriedade e de como se relaciona com o outro e com aquilo que lhe pertence.
11. Estruturalmente, a que tipo de narrativa literária esse conto se assemelha? Justifique.
Assemelha-se à fabula, pois o protagonista é um animal dotado de características humanas e a narrativa apresenta uma intenção moralizante.