Leia atentamente a opinião de Machado de Assis, o principal representante do Realismo brasileiro, sobre O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós (texto 1). Em seguida, leia um trecho desse romance (texto 2) e responda às questões propostas.
[...] O crime do padre Amaro revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a que abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do L'Assommoir. Se fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária; e eu, que lhe não nego a minha admiração, tomo a peito dizer-lhe francamente o que penso [...].
Ora bem, compreende-se a ruidosa aceitação d'O crime do padre Amaro. [...] Víamos aparecer na nossa língua um realista sem rebuço, sem atenuações, sem melindres, resoluto a vibrar o camartelo no mármore da outra escola, que aos olhos do Sr. Eça de Queirós parecia uma simples ruína, uma tradição acabada. Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez, aparecia um livro [...] em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário. [...] Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha. [...]
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. v. 3. p. 903-904.
L'Assommoir: A taverna, romance naturalista de Émile Zola;
camartelo: instrumento semelhante ao martelo qualquer instrumento ou objeto usado para quebrar, demolir, bater repetidamente, escuso: suspeito, ilícito;
torpe: que contraria ou fere os bons costumes, a decência, a moral;
exação: exigência.
TEXTO 2
O crime do padre Amaro (fragmento)
[...] Ela concordou logo - como em tudo que saía dos seus lábios. Desde a primeira manhã, na casa do tio Esguelhas, ela abandonara-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não havia na sua pele um cabelinho, não corria no seu cérebro uma ideia, a mais pequenina, que não pertencesse ao senhor pároco. Aquela possessão de todo o seu ser não a invadira gradualmente; fora completa, no momento em que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ela. Parecia que os beijos dele lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependência inerte da sua pessoa. E não lho ocultava: gozava em se humilhar, oferecer-se sempre, sentir-se toda dele, toda escrava; queria que ele pensasse por ela e vivesse por ela; descarregara-se-lhe nele, com satisfação, daquele fardo da responsabilidade que sempre lhe pesara na vida; os seus juízos agora vinham-lhe formados do cérebro do pároco, tão naturalmente como se saísse do coração dele o sangue que lhe corria nas veias. [...] Vivia com os olhos nele, numa obediência de animal: tinha só a curvar-se quando ele falava, e quando vinha o momento de desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ela desforrava-o de todo um passado de dependências a casa do tio, o seminário, a sala branca do senhor Conde de Ribamar... A sua existência de padre era uma curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediência ao senhor bispo, à câmara eclesiástica, aos cânones, à Regra que nem lhe permitia ter uma vontade própria nas suas relações com o sacristão. E agora, enfim, tinha ali aos seus pés aquele corpo, aquela alma, aquele ser vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus - era ele também agora o Deus de uma criatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ela ao menos, era belo, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sábios. [...]
QUEIRÓS, Eça de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 443-444.
1. No texto 1, Machado de Assis comenta o romance O crime do padre Amaro, criticando severamente a filiação de Eça de Queirós ao Naturalismo de Émile Zola, autor do romance L'Assommoir.
a) Explique o que este trecho do texto 1 indica sobre a posição de Machado de Assis a respeito da adesão de Eça de Queirós ao Naturalismo.
Se fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária; e eu, que lhe não nego a minha admiração, tomo a peito dizer-lhe francamente o que penso [...].
1. a) 0 fragmento indica que, embora considere Eça de Queirós um grande escritor, Machado de Assis discorda de sua filiação ao Naturalismo, como mostra a passagem "entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo".
b) A que característica do Naturalismo a frase a seguir se refere?
Pela primeira vez, aparecia um livro [...] em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário.
1. b) A frase refere-se à exploração demasiada da submissão dos personagens dos romances naturalistas aos instintos, isto é, à sua animalização.
2. Releia este trecho do texto 1.
Víamos aparecer na nossa língua um realista sem rebuço, sem atenuações, sem melindres, resoluto a vibrar o camartelo no mármore da outra escola, que aos olhos do Sr. Eça de Queirós parecia uma simples ruína, uma tradição acabada.
a) A que estilo literário Machado de Assis se refere, por meio da expressão "outra escola"?
Machado de Assis se refere ao Romantismo.
b) Identifique o trecho da passagem que revela o tom irônico de Machado de Assis ao tratar:
1. a crueza com que o Naturalismo pretende "dissecar o real".
b1) "[...] um realista sem rebuço, sem atenuações, sem melindres".
2. a violência com que Eça de Queirós pretende demolir a tradição romântica.
b2) "[...] resoluto a vibrar o camartelo no mármore da outra escola, que aos olhos do Sr. Eça de Queirós parecia uma simples ruína, uma tradição acabada".
c) Transcreva outro trecho do texto de Machado de Assis em que o autor ironiza o Naturalismo.
"Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha."
3. Releia o fragmento de O crime do padre Amaro (texto 2) e transcreva a primeira passagem que revela ao leitor a motivação sensual do domínio que Amaro exerce sobre a personagem Amélia
"Aquela possessão de todo o seu ser não a invadira gradualmente; fora completa, no momento em que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ela. Parecia que os beijos dele lhe tinham sorvido, esgotado a alma: [...]".
4. Por que a descrição de Amélia exemplifica o caráter minucioso com que, segundo Machado de Assis, Eça de Queirós faz a "reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis"? Exemplifique.
A descrição de Amélia exemplifica esse caráter por ser realizada de maneira determinista, mostrando reiteradamente a tendência naturalista de redução da mulher à condição de fêmea, escravizada pelos instintos, como se percebe em "Vivia com os olhos nele, numa obediência de animal: tinha só a curvar-se quando ele falava, e quando vinha o momento de despertar o vestido".
5. Na sua opinião, a descrição de Amaro confirma ou contradiz a opinião que Machado de Assis expressa na questão anterior? Utilize uma passagem do texto 2 para exemplificar sua resposta.
A descrição de Amaro confirma a opinião de Machado de Assis, pois mostra que um personagem gosta de dominar o outro, desforrando-se, dessa forma, de seu passado de dependências. Exemplo: "E agora, enfim, tinha ali aos seus pés aquele corpo, aquela alma, aquele ser vivo sobre quem reinava com despotismo".
BONS ESTUDOS!
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