domingo, 19 de março de 2023

Conto "Chuva: a abensonhada", de Mia Couto (Atividade com respostas)


    O texto que você vai ler a seguir é de autoria de Mia Couto, premiado escritor de Moçambique,
país do continente africano onde a língua portuguesa é idioma oficial.
     O momento descrito no conto refere-se à época logo após a longa guerra civil em Moçambique (1977-1992), quando cerca de um milhão de pessoas morreram em combates. Nesse período, o povo moçambicano superava as consequências do violento conflito, ao mesmo tempo em que convivia com uma forte estiagem e uma grande crise de fome, obrigando cinco milhões de civis a se deslocarem dos campos e do território. A guerra na qual o país ficou mergulhado 16 anos, assim como qualquer outra, deixou sequelas com as quais a população ainda tem de conviver: inúmeras minas terrestres que mutilam pessoas até hoje. Mesmo o conflito tendo chegado ao fim em 1992, em 2013 ressurgiu em Moçambique outro conflito armado e um novo acordo de paz ainda não foi concluído.

                           Chuva: a abensonhada

    Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. [...] Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

    Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima, mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.

    Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de usar e profere suas certezas:

    -Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu fato?
     -Mas, Tia Tristereza: não será está chover de mais?
    De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.

    Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade do estio se seguirá a punição das cheias?

    Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:

    - Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água.

    E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades. 
    -Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram. 
    - Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?

    Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:

    - A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique...

    Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atração de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é onde a casa sonha ser mundo?

    A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo:

    - Tristereza, tira o meu casaco.

    Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


GLOSSÁRIO

Charco: terreno alagadiço, cheio de poças de água.

Descortinado: sem cortinas, sem trajes. 

Emudecer: calar, aquietar-se.

Estio: período de seca.

Evasão: desculpa, fuga.

Fato: veste, indumentária, casaco.

Ganga: tecido barato, geralmente azul ou amarelo.

POR DENTRO DO TEXTO

1. Descreva as personagens do conto e o assunto principal sobre o qual conversam.

    O narrador personagem, provavelmente jovem, bastante pensativo e reflexivo, e tia Tristereza, que é idosa e mostra-se sábia e conhecedora das crenças de seu país. As  personagens conversam sobre a chuva que caía depois de três meses de estiagem em Moçambique.

2. Em que lugar ocorre o diálogo entre essas personagens?

     Elas estão dentro de uma casa.

3. Elas têm a mesma opinião sobre o assunto principal que está sendo tratado?

 Os dois não têm a mesma opinião: ela acredita que a chuva é um recado dos espíritos, que está chovendo por causa das rezas e cerimônias oferecidas aos antepassados e que vai cair pelo tempo certo. Ele acha que está chovendo demais e tem receio de que haja cheias como consequência do grande volume de chuva.

4. Transcreva apenas a alternativa que melhor exprime a opinião da personagem Tristereza sobre a
chuva.

a) A chuva era um castigo dos deuses, assim como o período de estio que o povo havia enfrentado.

b) A chuva serviria para limpar o povo de qualquer pecado e excesso que houvesse cometido durante o período de guerra. 

c) A chuva estava lavando a terra do triste passado de guerra. 


5. Releia o trecho a seguir, extraído do conto lido:

A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

a) A alegria que as personagens experimentam se refere somente à chuva que cai após o período de seca?
    
 Não. Elas estão alegres também porque a guerra está no fim.


b) Transcreva um trecho do terceiro parágrafo que comprove sua resposta ao item anterior. 

    "Em todo o Moçambique a guerra está parar"

6. Releia este outro trecho: 

    A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.

• Que relação esse trecho estabelece com a chegada da chuva em Moçambique?

 De acordo com o trecho, a paz não depende da vontade dos políticos, mas é influenciada por outras razões. No conto, a paz é atribuída à chegada da chuva, ou seja, à ocorrência de um fenômeno da natureza.

7. Um aspecto marcante da prosa de Mia Couto é a personificação de elementos que possuem características de seres vivos. Releia o trecho a seguir:

    Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros.

Copie desse trecho três elementos que foram personificados e indique que ações praticam.

A roupa suspira; a teimosia fica suspensa em um cabide; e gotas de chuva (aqui chamadas de riscos molhados)  sentem tristeza e descem pelos vidros.

8. Veja a capa e leia o prefácio da obra Estórias abensonhadas, de Mia Couto, de onde foi extraído o conto "Chuva: a abensonhada".


     Estas estórias foram escritas depois da guerra. Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas, destroços sem íntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.

    Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tempo, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares.

    Estas estórias falam desse território onde nós vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Prefácio).

RESPONDA:

a) O autor do texto nos revela sensações que vivenciou no período em que escreveu as histórias que compõem sua obra.

• Que sensações são essas? 

Mágoa e esperança.

• Que fato foi determinante para que ele se sentisse assim nesse período?

 A Guerra Civil  Moçambicana.    

 b) Como ele se vê nos dias de hoje em relação aos sentimentos que tinha quando escreveu Estórias
abensonhadas? 

Resposta possível: Uma pessoa forte e cheia de esperança, assim como as pessoas desse território africano, o que pode ser comprovado na frase "[...] vamos refazendo e vamos  molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual [...]". 

c) Qual pode ter sido a intenção do autor ao produzir o prefácio? 

 Resposta possível: Situar o leitor em relação à obra, mostrando o contexto em que foi escrita, o modo  como se sentia durante o processo e a transformação na sua maneira de ver a vida.


d) Esse tipo de texto inicial motiva o leitor a ler a obra? Justifique.

     Resposta pessoal. Espera-se que os alunos respondam que sim, pois normalmente o prefácio desperta curiosidade sobre o texto e estabelece certa aproximação com o autor.

CONHECENDO O AUTOR

                                   Mia Couto

    Nasceu em Beira, Moçambique, em 5 de julho de 1955. É biólogo e jornalista de formação e autor de mais de trinta livros, entre prosa e poesia. Em muitas de suas obras, Mia Couto tenta recriar a língua portuguesa com uma influência moçambicana, utilizando o léxico de várias regiões do país e produzindo um novo modelo de narrativa africana. Seu romance Terra sonâmbula é considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Recebeu uma série de prêmios literários, entre eles o Prêmio Camões de 2013, o mais prestigioso da língua portuguesa, e o Neustadt Prize de 2014. É membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.



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