O Humanismo e o teatro vicentino
1. (Unicamp-SP) Os excertos abaixo foram extraídos do Auto da barca do inferno, de Gil Vicente.
[...] FIDALGO: Que leixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
DIABO: [...] E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
por que rezem lá por til...[...]
ANJO: Que querês?
FIDALGO: Que me digais,
pois parti tão sem aviso,
se a barca do paraíso
é esta em que navegais.
ANJO: Esta é; que me demandais?
FIDALGO: Que me leixês embarcar.
sô fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.
ANJO: Não se embarca tirania
neste batel divinal.
FIDALGO: Não sei por que haveis por mal
Que entr'a minha senhoria.
ANJO: Pera vossa fantesia
mui estreita é esta barca.
FIDALGO: Pera senhor de tal marca
nom há aqui mais cortesia? [...]
ANJO: Não vindes vós de maneira
pera ir neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio.
Vos irês mais espaçoso
com fumosa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso;
e porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fontes fumoso. [...]
SAPATEIRO... E pera onde é a viagem?
DIABO: Pera o lago dos danados.
SAPATEIRO: Os que morrem confessados,
onde têm sua passagem?
DIABO: Nom cures de mais linguagem!
Esta é a tua barca, esta!
[...] E tu morreste excomungado:
não o quiseste dizer.
Esperavas de viver,
calaste dous mil enganos...
tu roubaste bem trint'anos
o povo com teu mester. [...]
SAPATEIRO: Pois digo-te que não quero!
DIABO: Que te pês, hás-de ir, si, si!
SAPATEIRO: Quantas missas eu ouvi
não me hão elas de prestar?
DIABO: Ouvir missa, então roubar,
é caminho per'aqui.
(Gil Vicente, Auto da barca do Inferno, em Cleonice Berardinelli (org.), Antologia do teatro de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL. 1984, p 57-58 e 68-69.)
a) Por que razão específica o fidalgo é condenado a seguir na barca do inferno? E o sapateiro?
O fidalgo era um sujeito arrogante e presunçoso, que havia sustentado sua riqueza com a exploração do povo; além disso, considerava levar consigo todas as suas posses para o céu, daí o comentário do anjo que na outra barca a cadeira entrará / e o rabo caberá / e todo vosso senhorio. Já o sapateiro roubava de seus fregueses, como fica explícito na fala do diabo (tu roubaste bem trint'anos/o povo com teu mester).
b) Além das faltas específicas desses personagens, há uma outra, comum a ambos e bastante praticada à época, que Gil Vicente condena. Identifique essa falta e indique de que modo ela aparece em cada um dos personagens.
Os dois personagens condenados praticam a religião de maneira vã; o fidalgo conta com pessoas rezando em seu lugar e o sapateiro, além de ter escondido que morreu excomungado, alega ter ouvido missas e confessado.
2. (Unicamp-SP) Na seguinte cena do Auto da Barca do Inferno, o Corregedor e o Procurador dirigem-se à Barca da Glória, depois de se recusarem a entrar na Barca do Inferno.
Corregedor: Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!
Anjo: Ó pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
Corregedor: Ó! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
Joane (Parvo): Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et perniz perdiguitorum
e mijais nos campanairos!
Corregedor: Ó! Não nos sejais contrairos,
Pois nom temos outra ponte!
Joane (Parvo): Beleguinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
Pera: para.
Habeatis: tende.
Homens dos breviairos: homens de leis.
Rapinastis coelhorum / Et perniz perdiguitorum: Recebem coelhos e pernas de perdiz como suborno.
Beleguinis ubi sunt?: Onde estão os oficiais de justiça?
Ego latinus macairos: Eu falo latim macarrônico.
(Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996, p. 107-109.)
a) De que pecado o Parvo acusa o homem de leis (Corregedor)? Este é o único pecado de que ele é acusado na peça?
O parvo o acusa de receber suborno (o coelho e a perdiz representam os "presentes" que ele recebia) e de desrespeitar a Igreja ("mijar" nos campanários). Ele também é acusado de enriquecer às custas dessa prática.
b) Com que propósito o latim é empregado pelo Corregedor? E pelo Parvo?
O Corregedor procura usar o latim como uma demonstração de conhecimento, de forma arrogante Além disso, o latim é uma forma que ele tinha de ludibriar aqueles que o procuravam: dominando essa língua, ele poderia dizer coisas sem que os outros o entendessem e assim convencê-los, estratégia que ele acha válida para enganar o anjo e o diabo. O Parvo ironiza esse tipo de comportamento ao usar o latim, já
que é um homem sem instrução, e, portanto, não deveria conhecer a língua (como de fato admite ao dizer que fala "latim macarrônico").
3. (PUC-SP) Gil Vicente, criador do teatro português, realizou uma obra eminentemente popular. Seu Auto da Barca do Inferno, encenado em 1517, apresenta, entre outras características, a de pertencer ao teatro religioso alegórico. Tal classificação justifica-se por:
a) ser um teatro de louvor e litúrgico em que o sagrado é plenamente respeitado.
b) não se identificar com a postura anticlerical, já que considera a igreja uma instituição modelar e virtuosa.
c) apresentar estrutura baseada no maniqueísmo cristão, que divide o mundo entre o Bem e o Mal, e na correlação entre a recompensa e o castigo.
d) apresentar temas profanos e sagrados e revelar-se radicalmente contra o catolicismo e a instituição religiosa.
e) aceitar a hipocrisia do clero e, criticamente, justificá-la em nome da fé cristã.
A divisão entre o bem e o mal e o castigo e a recompensa ocorre na presença das duas barcas, cada uma representando apenas um lado. Não há louvor e liturgia, pois não se trata de teatro em homenagem a símbolos religiosos, e o clero (e não a religião ou a fé) é duramente criticado por sua postura hipócrita.
4. (UFES) Um dos pontos comuns na crítica sobre o Auto da barca do inferno, do dramaturgo português Gil Vicente, é a atualidade da representação dos problemas sociais e morais de sua época, 1517. Por meio de personagens de diversas ordens sociais, como o Fidalgo, o Frade ou a Alcoviteira, o autor tipifica e alegoriza, sobretudo, os vícios.
A partir da cena a seguir entre o Diabo e o Corregedor ("magistrado que tem jurisdição sobre todos os outros juízes de uma comarca, e que tem a função de fiscalizar a distribuição da justiça, o exercício da advocacia e o andamento dos serviços forenses" - Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa), elabore uma carta dirigida a Gil Vicente, em que seja observada a permanência, na realidade brasileira contemporânea, de problemas que ele apontou satiricamente.
DIABO [...] Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis!
Super jure majestatis
tem vosso mando vigor?
DIABO Quando éreis ouvidor
non ne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina
como havemos de dispor...
Oh! Que isca esse papel
para um fogo que eu sei!
CORREGEDOR Domine, memento mei!
Non est tempus, Bacharel!
Imbarquemini in batel
quia judicastis malicia.
(VICENTE, Gil. Auto da barca do inferna. In O velho da horta. Auto da barca do inferno, Farra de Inês Pereira. Ed. Segismundo Spina. 32. ed.São Paulo: Atelier, 1998, p. 155-156.)
Videtis qui petatis: vede o que reclamais.
Super jure majestatis: acima do direito de majestade.
Non ne accepistis rapina: acaso não recebestes roubo.
Bolina: cabo de sustentação da vela do barco.
Domine, memento mei: Senhor, lembra-te de mim.
Quia judicastis malicia: porque sentenciastes.com malícia.
Seguindo a estrutura de uma carta, o texto deve apresentar: local e data da escrita; vocativo indicando o interlocutor; desenvolvimento do conteúdo; assinatura. Quanto ao conteúdo, podem ser analisadas notícias em que se vejam exemplos da mesma prática (juízes que beneficiam alguém em troca de dinheiro ou favores). Interessante também é a constatação de que uma prática como essa na sociedade brasileira contemporânea tem origem antiga, e que, portanto, valores que deveriam ser defendidos acabam sendo esquecidos. Outro ponto que pode ser abordado é se a responsabilidade por esses crimes pertence ao sistema judiciário (que pouco mudou desde então e oferece essa possibilidade a quem quer ser desonesto) ou aos indivíduos obcecados pelo poder.
5. (UFRGS-RS) A cena do embarque do frade Babriel é uma das mais importantes do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Numere as seguintes ações de Babriel de acordo com a ordem em que elas ocorrem na referida cena.
( ) O frade utiliza-se do hábito na tentativa de alcançar a salvação.
( ) O frade, ao se encontrar com o Diabo, está acompanhado de Florença.
( ) O frade dirige-se à Barca da Glória.
( ) O frade é recebido pelo parvo Joane.
( ) O frade, acompanhado da mulher, acolhe a sentença.
A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é:
a) 2-1-4-3-5.
b) 3-4-2-5-1.
c) 2-1-3-4-5.
d) 5-3-2-1-4.
e) 5-2-3-4-1.
Todos os personagens da peça se dirigem antes ao Diabo e, ao descobrirem que ele os levará, vão procurar o Anjo, tentando convencer esse de que merecem ir para o céu (com exceção dos cavaleiros, que vão direto à barca do Paraíso, pois morreram lutando nas Cruzadas, em nome da fé cristã). O Parvo fica ao lado do anjo, recepcionando todos que chegam.
6. (UFRGS-RS) Considere as seguintes afirmações, relacionadas ao episódio do embarque do fidalgo, da obra Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.
I. A acusação de tirania e presunção dirigida ao fidalgo configura uma crítica não ao indivíduo, mas à classe a que ele pertence.
II. Gil Vicente critica as desigualdades sociais ao apontar o desprezo do fidalgo aos pequenos, aos desfavorecidos.
III. No momento em que o fidalgo pensa ser salvo por haver deixado, em terra, alguém orando por ele, evidencia-se a crítica vicentina à fé religiosa.
Quais estão corretas?
a) Apenas I.
b) Apenas I e II.
c) Apenas I e III.
d) Apenas II e III.
e) I, II e III.
A afirmativa III erra em considerar que a crítica era à fé religiosa, tanto que os cavaleiros cristãos, que morreram lutando pela fé, vão direto para a barca do Paraíso. Na verdade, a crítica era à postura hipócrita daqueles que dizem ter fé, mas não praticam boas ações.
7. (PUC-SP) Gil Vicente escreveu o Auto da Barca do Inferno em 1517, no momento em que eclodia na Alemanha a Reforma Protestante, com a crítica veemente de Lutero ao mau clero dominante na igreja. Nesta obra, há a figura do frade, severamente censurado como um sacerdote negligente. Indique a alternativa cujo conteúdo não se presta a caracterizar, na referida peça, os erros cometidos pelo religioso.
a) Não cumprir os votos de celibato, mantendo a concubina Florença.
b) Entregar-se a práticas mundanas, como a dança.
c) Praticar esgrima e usar armamentos de guerra, proibidos aos clérigos.
d) Transformar a religião em manifestação formal, ao automatizar os ritos litúrgicos.
e) Praticar a avareza como cúmplice do fidalgo, e a exploração da prostituição em parceria com a alcoviteira.
O frade se apresenta com uma moça, dizendo explicitamente que ela é sua companheira e com material de esgrima, fazendo até uma demonstração de suas habilidades. Ele chega ao diabo dançando, numa felicidade quase ingênua pela certeza de que iria para o céu apenas por vestir o hábito. Ele não tem nenhuma relação com os motivos que levaram o fidalgo ou a alcoviteira a serem condenados (na peça, eles nem sequer interagem).
8. (PUC-SP) O teatro de Gil Vicente caracteriza-se por ser fundamentalmente popular. E essa característica manifesta-se, particularmente, em sua linguagem poética, como ocorre no trecho a seguir, de O Auto da Barca do Inferno.
Ó Cavaleiros de Deus,
A vós estou esperando,
Que morrestes pelejando
Por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo o mal,
Mártires da Madre Igreja,
Que quem morre em tal peleja
Merece paz eternal.
No texto, fala final do Anjo, temos no conjunto dos versos:
a) variação de ritmo e quebra de rimas.
b) ausência de ritmo e igualdade de rimas.
c) alternância de redondilha maior e menor e simetria de rimas.
d) redondilha menor e rimas opostas e emparelhadas.
e) igualdade de métrica e de esquemas das palavras que rimam.
Há igualdade métrica nos versos, todos são redondilhas maiores (sete silabas poéticas). O esquema de rimas também segue um padrão ABBA CDDC Esse aspecto formal é próprio de textos populares, inclusive era bastante praticado na lírica trovadoresca, pois facilita o entendimento e a memorização.
9. (UFPA) O monólogo dramático O pranto de Maria Parda, de Gil Vicente, é um desses textos emblemáticos da produção de um dos mais respeitáveis autores portugueses. A peça dispõe de um conteúdo pelo qual perpassam variados sentidos, ligados a problemas sociais, a preconceito, à paródia, ao grotesco, enfim, nela se encontra uma espécie de mosaico de informações de toda ordem. A riqueza de questões suscitadas no monólogo ainda hoje pode ser considerada, como é da natureza do texto vicentino, de atualidade indiscutível.
Com base no comentário acima, é correto afirmar, relativamente à linguagem e ao conteúdo da peça de Gil Vicente, que:
a) a linguagem da peça é rica de lamentos, pragas, pedidos, promessas e muitas exclamações apelativas.
b) os taberneiros de Lisboa constituem uma espécie de coro, na peça, com a função de comentar os la- mentos expressos nas falas de Maria Parda.
c) Há, na peça, uma enfática oposição ao uso de vinho, manifesta no discurso de sacerdotes, escu- deiros e barqueiros.
d) Gil Vicente cria um personagem com as características referidas aqui: doente, envelhecida, “sem gota de sangue nas veias", de corpo "tão seco".
e) Maria Parda - mestiça, atrevida e sexualmente livre - é um personagem que representa a base da pirâmide social lisboeta da época.
Como todo texto de Gil Vicente, a peça tem fundo moralizante. O fato de Maria Parda procurar desesperadamente por alguém que lhe dê vinho e, na impossibilidade de obtê- lo, resolver se matar é crítica ao hábito.
10. (PUC-SP) A farsa "O Velho da Horta" revela surpreendente domínio da arte teatral. Segundo seus estudiosos, Gil Vicente utiliza-se de processos dramáticos que se tornarão típicos em suas criações cômicas. Não condiz com as características de seu teatro
a) o rigoroso respeito à categoria tempo, delineado na justa sucessão do transcorrer cronológico das ações.
b) a não preparação de cenas e entrada de personagens, o que provoca a precipitação de certos quadros e situações.
c) o realismo na caracterização social, psicológica e linguística de seus personagens.
d) o perfeito domínio do diálogo e grande poder de exploração do cômico.
e) o pouco aparato cênico, limitado ao necessário para sugerir o ambiente em que decorre a peça.
11. (Unicamp-SP) Leia os diálogos abaixo da peça O Velho da Horta de Gil Vicente:
(Mocinha) - Estás doente, ou que haveis?
(Velho) - Ai! não sei, desconsolado,
Que nasci desventurado.
(Mocinha) - Não choreis;
mais mal fadada vai aquela.
(Velho) - Quem?
(Mocinha) - Branca Gil.
(Velho) - Como?
(Mocinha) - Com cent'açoutes no lombo,
e uma corocha por capela*.
E ter mão;
leva tão bom coração,**
como se fosse em folia.
Ó que grandes que lhos dão!***
*Corocha: cobertura para a cabeça própria das alcoviteiras
*por capela: por grinalda.
**Caminha tão corajosa.
*** Ó que grandes açoites que lhe dão!
(Gil Vicente, O Velho da Horta, em Cleonice Berardinelli (org.), Antologia do Teatro de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Brasília, INL, 1984, p. 274).
a) A qual desventura refere-se o Velho neste diálogo com a Mocinha?
Ao fato de o velho amar uma moça sem ser correspondido, pedindo à alcoviteira que o ajudasse, mas esta também não tem sucesso.
b) A que se deve o castigo imposto a Branca Gil?
Branca Gil, a alcoviteira, decide ajudar o velho em troca de dinheiro. A punição dela se deve ao fato de que seu único objetivo era extorquir o velho com falsas promessas.
c) Diante do castigo, Branca Gil adota uma atitude paradoxal. Por quê?
A contradição presente no comportamento dela é a de ser açoitada em público e ainda "ter bom coração" e andar por aí de cabeça erguida. Isso acontece porque ela já está acostumada aos castigos, de tanto tempo que pratica essas ações.
12. (PUC-SP) A respeito da obra "Farsa do Velho da Horta", escrita em 1512 por Gil Vicente, pode afirmar-se que:
a) peca por não apresentar perfeito domínio do diálogo entre as personagens, resvalando, muitas vezes, por monólogos desnecessários.
b) sofre da ausência de exploração do cômico, já que, tematicamente, permanece na esfera do amor senil.
c) utiliza pouco aparato cênico para sugerir o ambiente em que decorre a peça, já que a pobreza cenotécnica é uma de suas características.
d) falha por falta de unidade de ação provocada por longas digressões, como a ladainha mágica da al- coviteira.
e) obedece rigorosamente ao tratamento do tempo e respeita as normas que dele a tradição consagrou.
Não se pode falar de minimalismo, mas as peças de Gil Vicente usavam somente o aparato cênico necessário para sugerir aos espectadores o cenário real. As grandes qualidades comumente apontadas nas obras de Gil Vicente são os diálogos, o equilíbrio de comicidade e a unidade das peças, que sempre apresentam um fundo moral.
13. (Unifesp) Esta questão baseia-se em fragmentos de um autor português.
Auto da Lusitânia
(Gil Vicente - 1465?-1536?)
Estão em cena os personagens Todo o Mundo (um rico mercador) e Ninguém (um homem vestido como pobre). Além deles, participam da cena dois diabos, Berzebu e Dinato, que escutam os diálogos dos primeiros, comentando-os, e anotando-os.
Ninguém para Todo o Mundo: E agora que
[buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope co ela já.
Berzebu para Dinato: Outra adição nos acude:
Escreve aí, a fundo, que
busca honra Todo o Mundo, e Ninguém busca
[virtude.
Ninguém para Todo o Mundo: Buscas outro mor
[bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Berzebu para Dinato: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Berzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém para Todo o Mundo: Buscas mais,
[amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida e quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Berzebu para Dinato: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Berzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.
(Antologia do Teatro de Gil Vicente)
A ironia, ou uma expressão irônica, consiste em, intencionalmente, dizer o contrário do que as palavras significam, no sentido literal, denotativo. Lendo-se o fragmento de Gil Vicente, percebe-se que o autor ironiza a sociedade:
a) no nome dado a Berzebu que, no Novo Testamento, significa o "príncipe dos demônios".
b) no comportamento humilde do personagem Todo o Mundo.
c) na dissimulação contida nos nomes dos personagens e suas caracterizações: Todo o Mundo (= um rico mercador) e Ninguém (= um homem vestido como pobre).
d) no pedido que Berzebu faz a Dinato: "Escreve lá outra sorte."
e) no comportamento obstinado do personagem Ninguém.
14. (UEL-PR) Em Farsa de Inês Pereira (1523), Gil Vicente apresenta uma donzela casadoura que se lamenta das canseiras do trabalho doméstico e imagina casar-se com um homem discreto e elegante. O trecho a seguir é a fala de Latão, um dos judeus que foi em busca do marido ideal para Inês, dirigindo-se a ela:
Foi a coisa de maneira,
tal friúra e tal canseira,
que trago as tripas maçadas;
assim me fadem boas fadas
que me soltou caganeira...
para vossa mercê ver
o que nos encomendou.
Friúra: frieza, estado de quem está frio.
Maçadas: surradas.
Fadem: predizem.
(VICENTE, Gil. Farsa de Inês Pereira. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 95.)
Sobre o trecho, é correto afirmar:
a) Privilegia a visão racionalista da realidade por Gil Vicente, empregada pelo autor para atender as necessidades do homem do Classicismo.
b) É escrito com perfeição formal e clareza de raciocínio, pelas quais Gil Vicente é considerado um mestre renascentista.
c) Retrata uma cena grotesca em que se notam traços da cultura popular, o que não invalida a inclusão de Gil Vicente entre os autores do Humanismo.
d) Sua linguagem é característica de um marcado pelo Renascimento, o que se evidencia pela referência de Gil Vicente a figuras mitológicas clássicas, como as "boas fadas".
e) Revela em Gil Vicente uma visão positiva do homem de fé que se liberta da doença pelo recurso à divindade.
BONS
ESTUDOS!
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