terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Questões de vestibular: Funções e gêneros da literatura - Parte II



1. (UFU-MG) Leia o poema seguinte e assinale a alternativa correta:

              Filhos

   A meu filho Marcos

Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria

se foram

Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via
crianças
já que
agora
estão os três
com mais 
de trinta anos.

                           Ferreira Gullar. Melhores poemas.

a) O poeta Ferreira Gullar é um escritor contemporâneo que participou de vários movimentos de restauração da poesia, o que significa renovar sua estrutura, sua linguagem. Neste poema, a linguagem prosaica, os versos livres e a emoção espontânea são conquistas do concretismo.

b) Ferreira Gullar passa por várias experiências poéticas, encontrando a razão do poema na comoção lírica. Em acordo com os preceitos da essência lírica, o poema apresenta distanciamento e objetividade do sujeito lírico com os fatos descritos.

c) Em entrevista à revista Língua portuguesa (São Paulo: Editora Segmento, 2006, n. 5), o poeta declara que esse poema é fruto de uma circunstância, de um impulso, pois sonhou com a situação descrita nele. Desta forma, ao descrever o sonho, pode-se afirmar que o gênero épico prevalece nesse poema.

d) O olhar do poeta Ferreira Gullar contempla grandes acontecimentos universais, pequenos fatos do cotidiano, cenas da vida doméstica, não raro, imprimindo sobre esses episódios a consciência da efemeridade da vida. Nesse poema, a lembrança de um passado familiar provoca a reflexão dessa consciência.

2. (Vunesp) A questão a seguir toma por base um poema de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810).

18

Não vês aquele velho respeitável,
que à muleta encostado,
apenas mal se move e mal se arrasta?
Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo,
o tempo arrebatado,
que o mesmo bronze gasta!

Enrugaram-se as faces e perderam 
seus olhos a viveza: 
voltou-se o seu cabelo em branca neve; 
já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo, 
nem tem uma beleza 
das belezas que teve.

Assim também serei, minha Marília, 
daqui a poucos anos, 
que o ímpio tempo para todos corre. 
Os dentes cairão e os meus cabelos. 
Ah! sentirei os danos, 
que evita só quem morre.

Mas sempre passarei uma velhice 
muito menos penosa.
Não trarei a muleta carregada, 
descansarei o já vergado corpo 
na tua mão piedosa, 
na tua mão nevada.

As frias tardes, em que negra nuvem 
os chuveiros não lance, 
irei contigo ao prado florescente: 
aqui me buscarás um sítio ameno, 
onde os membros descanse, 
e ao brando sol me aquente.

Apenas me sentar, então, movendo 
os olhos por aquela
vistosa parte, que ficar fronteira, 
apontando direi: - Ali falamos,
ali, ó minha bela,
te vi a vez primeira.

Verterão os meus olhos duas fontes, 
nascidas de alegria; 
farão teus olhos ternos outro tanto; 
então darei, Marília, frios beijos 
na mão formosa e pia, 
que me limpar o pranto.

Assim irá, Marília, docemente
meu corpo suportando 
do tempo desumano a dura guerra. 
Contente morrerei, por ser Marília 
quem, sentida, chorando 
meus baços olhos cerra.

Tomás Antônio Gonzaga. Marilia de Dirceu e mais poesias.
                           Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1982.

A leitura atenta deste poema do livro Marília de Dirceu revela que o eu lírico:

a) sente total desânimo perante a existência e os sentimentos.

b) aceita com resignação a velhice e a morte amenizadas pelo amor.

c) está em crise existencial e não acredita na durabilidade do amor.

d) protesta ao Criador pela precariedade da existência humana.

e) não aceita de nenhum modo o envelhecimento e prefere morrer ainda jovem.

3. (Mack-SP)

Reinando Amor em dois peitos, 
tece tantas falsidades,
que, de conformes vontades,
faz desconformes efeitos.
Igualmente vive em nós;
mas, por desconcerto seu, 
vos leva, se venho eu,
me leva, se vindes vós.
                                              Camões 

No texto, o eu lírico:

a) chama a atenção do leitor para as artimanhas que as mulheres apaixonadas costumam tramar a fim de conquistar os homens. 
b) dirige-se ao deus Amor, manifestando seu descontentamento com relação às falsas atitudes da amada.
c) manifesta poeticamente a ideia de que o Amor, atendendo a diferentes vontades, produz diferentes efeitos.
d) declara que, embora o amor esteja presente em todas as pessoas, nem todos o aceitam, fato que gera desentendimentos dolorosos.
e) dirige-se à pessoa amada para expressar seu entendimento  a respeito dos aspectos contraditórios do sentimento amoroso.

4. (UERJ)

                Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam 
não se sabe de onde e pousam 
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo 
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos 
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias, 
no maravilhado espanto de saberes 
que o alimento deles já estava em ti...

MÁRIO QUINTANA. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005

Eles não têm pouso 
nem porto (v. 6-7)

Os versos acima podem ser lidos como uma pressuposição do autor sobre o texto literário.
Essa pressuposição está ligada ao fato de que a obra literária, como texto público, apresenta o seguinte traço:

a) é aberta a várias leituras.
b) provoca desejo de transformação. 
c) integra experiências de contestação.
d) expressa sentimentos contraditórios.

5. (Unicamp-SP) Leia o poema, de Manuel António Pina, importante nome da lírica portuguesa contemporânea:

          Agora é

Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro

Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos 
lugar para o amor

Já não arranjamos vagar 
para o amor agora 
isto vai devagar
Isto agora demora

Manuel António Pina, Poesia Reunida (1974-2001). Lisboa: Assirio & Alvim, 2001, p. 49.

a) O poema trata de uma transformação. Explique-a.

O poema fala da transformação do amor existente entre duas pessoas. Ao dizer o que ocorre "agora" com a relação de amor ("Agora estamos misturados/No meio de nós já não cabe o amor"), o eu lírico aponta o desgaste provocado pelo tempo, que tornou a relação sem espaço para o amor e tediosa ("isto vai devagar"). No final, o tempo parece não passar mais ("Isto agora demora").

b) Que palavra marca essa transformação? 

A palavra "agora", que invoca uma situação anterior aquela que se vive no momento.


c) Qual a diferença introduzida por essa transformação no tratamento convencional dado ao tema?

O amor costuma ser retratado de forma idealizada, como um sentimento puro, livre de aspectos negativos. No poema, o eu lírico mostra que o amor pode se desgastar com o tempo e acabar.


6. (Insper-SP)
               
               Falar e dizer 

Não é possível que portentos não tenham ocorrido
Ou visões ominosas e graves profecias
Quando nasci.
Então nasce o chamado 
Herdeiro das superfícies e das profundezas então
Desponta o sol
E não estremunha aterrado o mundo?
Assim à idade da razão
Vazei os olhos cegos dos arúspices e, 
Fazendo rasos seus templos devolutos,
Desde então eu designo no universo vão
As coisas e as palavras plenas.
Com elas
Recôndito e radiante ao sopro dos tempos
Falo e digo
Dito e decoro
O caos arreganhado a receber-me incontinente.

                                                                Antônio Cícero 

Arúspice: Sacerdote romano que fazia presságios consultando as entranhas das vítimas.

Nos versos, a postura assumida pelo eu lírico em relação ao mundo revela:

a) confiança no poder da palavra, capaz de organizar o caos do universo em que o eu lírico se insere. 
b) aceitação de seu anonimato, visto que seus dons não estão ao alcance de serem compreendidos no universo.
c) sentimento de inferioridade diante da incerteza de poder nomear os acontecimentos do universo. 
d) insegurança em relação à tarefa a que se sente destinado: organizar o caos do universo.
e) revolta por perceber sua própria incapacidade de alterar o mundo à sua volta.

7. (Vunesp) A questão a seguir aborda um poema de Raul de Leoni (1895-1926).

                      A alma das cousas somos nós...

Dentro do eterno giro universal
Das cousas, tudo vai e volta à alma da gente, 
Mas, se nesse vaivém tudo parece igual 
Nada mais, na verdade,
Nunca mais se repete exatamente...

Sim, as cousas são sempre as mesmas na corrente
Que no-las leva e traz, num círculo fatal;
O que varia é o espírito que as sente 
Que é imperceptivelmente desigual,
Que sempre as vive diferentemente,
E, assim, a vida é sempre inédita, afinal...

Estado de alma em fuga pelas horas, 
Tons esquivos e trêmulos, nuanças 
Suscetíveis, sutis, que fogem no Íris
Da sensibilidade furta-cor...
E a nossa alma é a expressão fugitiva das cousas 
E a vida somos nós, que sempre somos outros!...
Homem inquieto e vão que não repousas!

Para e escuta:
Se as cousas têm espírito, nós somos
Esse espírito efêmero das cousas,
Volúvel e diverso,
Variando, instante a instante, intimamente,
E eternamente,
Dentro da indiferença do Universo!...

                                                        Luz mediterrânea, 1965.



Uma leitura atenta do poema permite concluir que seu título representa:

a) a negação dos argumentos defendidos pelo eu lírico. 
b) a confirmação do estado de alma disfórico do eu lírico.
c) a síntese das ideias desenvolvidas pelo eu lírico. 
d) o reconhecimento da supremacia do homem no mundo. 
e) uma afirmação prévia da incapacidade do homem.

8. (Vunesp) A questão toma por base um fragmento de uma peça do teatrólogo Guilherme Figueiredo (1915- 1997).

                                       A raposa e as uvas

     (Casa de Xantos, em Samos. Entradas à D.. E., e F. Um gongo. Uma mesa. Cadeiras. Um "clismos". Pelo pórtico, ao fundo, vê-se o jardim. Estão em cena Cleia, esposa de Xantós, e Melita, escrava. Melita penteia os cabelos de Cleia.)

     MELITA:- (Penteando os cabelos de Cleia.) Então Rodópis contou que Crisipo reuniu os dis- cípulos na praça, apontou para o teu marido e exclamou: "Tens o que não perdeste". Xantós respondeu: "E certo". Crisipo continuou: "Não perdeste chifres". Xantós concordou: "Sim". Crisipo finalizou: "Tens o que não perdeste; não perdeste chifres, logo os tens".

     (Cleia ri.) Todos riram a valer.

     CLEIA:-É engenhoso. É o que eles chamam sofisma. Meu marido vai à praça para ser insultado pelos outros filósofos?

     MELITA:- Não; Xantós é extraordinariamente inteligente... No meio do riso geral, disse a Crisipo: "Crisipo, tua mulher te engana, e no entanto não tens chifres: o que perdeste foi a vergonha!" E aí os discípulos de Crisipo e os de Xantós atiraram-se uns contra os outros...

     CLEIA:- Brigaram? (Assentimento de Melita.) Como é que Rodópis soube disto?

     MELITA: - Ela estava na praça.

     CLEIA: Vocês, escravas, sabem mais do que se passa em Samos do que nós, mulheres livres...

     MELITA:-As mulheres livres ficam em casa. De certo modo são mais escravas do que nós. 
     CLEIA:-É verdade. Gostarias de ser livre?

     MELITA:-Não, Cleia. Tenho conforto aqui, e todos me consideram. É bom ser escrava de um homem ilustre como teu marido. Eu poderia ter sido comprada por algum mercador, ou algum soldado, e no entanto tive a sorte de vir a pertencer a Xantós.

     CLEIA:- Achas isto um consolo?

     MELITA: - Uma honra. Um filósofo, Cleia!

     CLEIA: - Eu preferia que ele fosse menos filósofo e mais marido. Para mim os filósofos são pessoas que se encarregam de aumentar o número dos substantivos abstratos.

      MELITA:- Xantós inventa muitos?

      CLEIA: - Nem ao menos isto. E aí é que está o trágico: é um filósofo que não aumenta o voca- bulário das controvérsias. Já terminaste?

      MELITA: - Quase. É bom pentear teus cabelos: meus dedos adquirem o som e a luz que eles têm. Xantós beija os teus cabelos? (Muxoxo de Cleia.) Eu admiro teu marido.

      CLEIA: - Por que não dizes logo que o amas? Gostarias bastante se ele me repudiasse, te tornasse livre e se casasse contigo...

      MELITA: - Não digas isto... Além do mais, Xantós te ama...

      CLEIA: - À sua maneira. Faço parte dos bens dele, como tu, as outras escravas, esta casa...

      MELITA:-Sempre que viaja te traz presentes. 
      CLEIA: Não é o amor que leva os homens a dar presentes às esposas: é a vaidade: ou o remorso.
      MELITA:- Xantós é um homem ilustre.

      CLEIA: - É o filósofo da propriedade: "Os homens são desiguais: a cada um toca uma dádiva ou um castigo". É isto democracia grega... E o direito que o povo tem de escolher o seu tirano: é o direito que o tirano tem de determinar: deixo-te pobre; faço-te rico; deixo-te livre; faço-te escravo. E o direito que todos têm de ouvir Xantós dizer que a injustiça é justa, que o sofrimento é alegria, e que este mundo foi organizado de modo a que ele possa beber bom vinho, ter uma bela casa, amar uma bela mulher. Já terminaste? 
      MELITA: - Um pouco mais, e ainda estarás mais bela para o teu filósofo.

      CLEIA: O meu filósofo... Os filósofos são - sempre criaturas cheias demais de palavras...

*Espécie de cama para recostar-se.
 (Guilherme Figueiredo, Um deus dormiu lá em casa, 1964.)

A leitura deste fragmento da peça A raposa e as uvas revela que a personagem Cleia:

a) aprecia, orgulhosa, Xantós como homem e como filósofo.

b) tem bastante orgulho pelas vitórias do marido nos debates.

c) manifesta desprezo pelo marido, mas valoriza sua sabedoria. 

d) demonstra grande admiração pela cultura filosófica de Xantós.

e) preferiria que Xantós desse mais atenção a ela que à Filosofia.




segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Questões de vestibular: Funções e gêneros da literatura - Parte I



1. (FGV-RJ)

     Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao belicoso Pinga. [...]

     Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero. Mas o estilo atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos.

             Carlos Drummond de Andrade, Quando é dia de futebol. Rio: Record, 2002

Ao narrar o jogo entre brasileiros e mexicanos "å maneira de Homero", o autor adota o estilo:

(a) épico.

b) lírico.

c) satírico.

d) técnico.

e) teatral.

1. Carlos Drummond de Andrade adotou o gênero épico caracterizado pela narração em linguagem rebuscada de feitos gloriosos de heróis com qualidades quase divinas.

2. (PUC-RJ)

Texto 1

     Espalham-se, por fim, as sombras da noite. O sertanejo que de nada cuidou, que não ouviu as harmonias da tarde, nem reparou nos esplendores do céu, que não viu a tristeza a pairar sobre a terra, que de nada se arreceia, consubstanciado como está com a solidão, para, relanceia os olhos ao derredor de si e, se no lagar pressente alguma aguada, por má que seja, apeia-se, desencilha o cavalo e reunindo logo uns gravetos bem secos, tira fogo do isqueiro, mais por distração do que por necessidade.

     Sente-se deveras feliz. Nada lhe perturba a paz do espírito ou o bem-estar do corpo. Nem sequer monologa, como qualquer homem acostumado a conversar.

     Raros são os seus pensamentos: ou rememora as léguas que andou, ou computa as que tem que vencer para chegar ao término da viagem.

     No dia seguinte, quando aos clarões da aurora acorda toda aquela esplêndida natureza, recomeça ele a caminhar, como na véspera, como sempre.

     Nada lhe parece mudado no firmamento: as nuvens de si para si são as mesmas. Dá-lhe o Sol, quando muito, os pontos cardeais, e a terra só lhe prende a atenção, quando algum sinal mais particular pode servir-lhe de marco miliário na estrada que vai trilhando.

                                                      TAUNAY, Visconde de. Inocência. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000002.pdf> Acesso em 20 set. 2012.

Texto 2

     Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.

     Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

     Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.

     - Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

     Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.

     A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.

     - Anda, excomungado.

     O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

         RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 9-10.

Texto 3

Toda viagem é interior 
embora
            por fora
se vista o carro ou o trem
e se aprenda a nadar
com o navio
             e a voar
pelos ares, com as bombas
e os aviões;
            toda viagem
se faz por dentro
como as estações 
se fabricam, invisíveis
a partir do vento
             silenciosas
como quando um pensamento
muda de tempo e de marcha 
distraído de si, e entra
em outro clima
             com a cabeça no ar: 
psiu, míssil, além do som
e de qualquer mapa
ou guia que desenrolo 
míope, sobre a estrada
que passa
sob meu pé-pneumático 
sob o célere céu azul 
do meu chapéu;
             toda viagem
avança e se alimenta 
apenas de horizontes
futuros, infinitos, vazios
e nuvens:
              toda viagem é anterior.

FREITAS BLHO, Armando. Longa vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 115-6

a) Tomando como base a leitura comparativa dos textos 1, 2 e 3, determine o sentido da palavra "viagem" em cada um deles.


No texto 1, a palavra "viagem" tem o sentido de deslocamento espacial, representando para o personagem a passagem por diferentes paisagens. No texto 2, "viagem" representa a fuga de um lugar hostil, em que se espera encontrar um lugar melhor para sobreviver. No texto 3, o sentido de "viagem"  associa-se ao plano do imaginário, ao interior do indivíduo, ao descobrir-se a si mesmo diante dos diversos lugares visitados durante a vida.

b) Determine o gênero literário predominante no texto 3, justificando a sua resposta com aspectos que o caracterizam.

O gênero literário predominante no texto 3 é o lírico, o que pode ser comprovado pela presença do eu lírico, que em tom intimista revela sentimentos e produz sensações.

3. (PUC-RJ)

Coração numeroso

Foi no Rio.
Eu passeava na Avenida quase meia-noite. 
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar 
e bondes tilintavam, 
abafando o calor
que soprava no vento
 e o vento vinha de Minas.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro, 
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos  com isso.

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor 
mil presentes da vida aos homens indiferentes, 
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 15-6.


a) O poema de Carlos Drummond de Andrade nos mostra a relação entre a cidade e o eu poético por meio de uma perspectiva intimista e confessional. A partir dessa constatação, determine o gênero literário predominante no texto, transcrevendo exemplos que justifiquem a sua resposta.

O texto é representativo do gênero lírico por demonstrar uma relação sentimental do eu poético com o mundo, o que pode ser comprovado em versos como "Meus paralíticos sonhos desgosto de viver / (a vida para mim é vontade de morrer)", "que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram", "O mar batia em meu peito, já não batia no cais.".

b) Contraste a primeira e a última estrofe do poema no que diz respeito à relação entre o eu poético e a cidade.

Houve entre a primeira e a última estrofe uma transformação do sentimento do eu lírico em relação à cidade. Na primeira estrofe, está presente um sentimento de estranhamento, de não pertencimento do eu poético em relação à cidade, o que pode ser comprovado pelo verso "Foi no Rio", como se a cidade fosse algo externo e estranho a ele. No decorrer das estrofes, vai ocorrendo gradualmente um processo de adaptação do eu poético com o alheio e finalmente, na última estrofe, há a construção de um novo "eu", de uma nova identidade, da qual a cidade passa a fazer parte, fusão que fica clara no verso "a cidade sou eu".


4. (PUC-RI)

               Recordação

Agora, o cheiro áspero das flores 
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.

Eram assim teus cabelos,
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.

As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exalação de água secreta, 
de talos molhados, de pólen, 
de sepulcro e de ressurreição.

E as borboletas sem voz 
dançavam assim veludosamente.

Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix, tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nítidas de folha,
-e incompreensíveis, incompreensíveis.

MEIRELES, Cecilia. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p. 154.

a) O poema de Cecilia Meireles caracteriza-se pela visão intimista do mundo, a presença de associações sensoriais e a aproximação do humano com a natureza. A memória é a fonte de inspiração do eu poético. A partir dessas afirmações, determine o gênero literário predominante no texto, justificando sua resposta com suas próprias palavras.

O texto pertence ao gênero lírico, pois trata de uma perspectiva pessoal do eu lírico a respeito de seus próprios sentimentos.

b) Observa-se no poema a utilização de inúmeras figuras de linguagem como recurso expressivo. Destaque do texto um exemplo de prosopopeia e outro de sinestesia.

Prosopopeia "borboletas sem voz" (atribui característica humana a um animal).

Sinestesia "cheiro áspero das flores" (mistura de sensações do olfato e do tato).


5. (UFBA) Assinale as proposições verdadeiras, some os números a elas associados e marque o resultado.

              Cidade prevista

Guardei-me para a epopeia 
que jamais escreverei.
Poetas de Minas Gerais e bardos do Alto-Araguaia, 
vagos cantores tupis, 
recolhei meu pobre acervo, 
alongai meu sentimento. 
O que eu escrevi não conta. 
O que desejei é tudo. 
Retomai minhas palavras, 
meus bens, minha inquietação, 
fazei o canto ardoroso, 
cheio de antigo mistério 
mas límpido e resplendente. 
Cantai esse verso puro, 
que se ouvirá no Amazonas, 
na choça do sertanejo 
e no subúrbio carioca, 
no mato, na vila X, 
no colégio, na oficina, 
território de homens livres 
que será nosso país
e será pátria de todos. 


Irmãos, cantai esse mundo 
que não verei, mas virá 
um dia, dentro em mil anos, 
talvez mais... não tenho pressa. 
Um mundo enfim ordenado, 
uma pátria sem fronteiras, 
sem leis e regulamentos, 
uma terra sem bandeiras, 
sem igrejas nem quartéis, 
sem dor, sem febre, sem ouro, 
um jeito só de viver, 
mas nesse jeito a variedade, 
a multiplicidade toda 
que há dentro de cada um. 
Uma cidade sem portas, 
de casas sem armadilha, 
um país de riso e glória 
como nunca houve nenhum. 
Este país não é meu 
nem vosso ainda, poetas. 
Mas ele será um dia 
o país de todo homem. 

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Carlos Drummond de Andrade: obra completa: poesia. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964. p. 194-195. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série Brasileira)

Analisando-se a manifestação do sujeito poético nesse poema, conclui-se que ele:
(01). aconselha outros poetas a dar continuidade à sua arte a serviço de um mundo em que tudo encontre a sua ordem, o seu lugar. 
(02). almeja um novo mundo em que as relações sociais se estabeleçam de forma transparente, contínua e harmoniosa. 
(04). vê a linguagem poética como meio único de passar bons sentimentos aos outros seres. 
(08). expressa, por meio de um tom evocativo, um desejo de que a sua obra sirva de base para outras obras. 
(16). sonha com um outro mundo em que o homem viva sem convenções sociais e preserve a sua singularidade interior. 
(32). deseja que sua obra ganhe um sentido que abra um novo mundo ao homem e o homem a si mesmo. 
(64). assume uma atitude de temor em face da precariedade da existência, transportando-se para um imaginário de reflexões íntimas. 


                              Soma: 59 (01 + 02 + 08 + 16 + 32)





quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Questões do Enem: Simbolismo

          
Simbolismo em Portugal

                 Epígrafe

Murmúrio de água na clepsidra** gotejante, 
Lentas gotas de som no relógio da torre, 
Fio de areia na ampulheta vigilante,

Leve sombra azulando a pedra do do quadrante*** 
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...
Homem, que fazes tu? Para que tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta
                                                [ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida 
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra
                                                    [que passa...

CASTRO, Eugênio de. Antologia pessoal
da poesia portuguesa.

(*) Epígrafe: inscrição colocada no ponto mais alto; tema.

(**) Clepsidra: relógio de água.

(***) Pedra do quadrante: parte superior de um relógio de sol.

1. A imagem contida em "lentas gotas de som" (verso 2) é retomada na segunda estrofe por meio da expressão:

a) tanta ameaça.
b) som de bronze. 
c) punhado de areia.
d) sombra que passa.
e) somente a Beleza.

2. Nesse poema, o que leva o poeta a questionar determinadas ações humanas (versos 6 e 7) é a

a) infantilidade do ser humano.
b) destruição da natureza.
c) exaltação da violência.
d) inutilidade do trabalho.
e) brevidade da vida.

Simbolismo no Brasil

3.    Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, 
Soluçando nas trevas, entre as grades 
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades 
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas, 
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves 
para abrir-vos as portas do Mistério?!

CRUZ E SOUSA, J. Poesia completa. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura/ Fundação Banco do Brasil, 1993.

Os elementos formais e temáticos relacionados ao contexto cultural do Simbolismo encontrados no poema "Cárcere das almas", de Cruz e Sousa, são

a) a opção pela abordagem, em linguagem simples e direta, de temas filosóficos.

b) a prevalência do lirismo amoroso e intimista em relação à temática nacionalista.

c) o refinamento estético da forma poética e o tratamento metafísico de temas universais.

d) a evidente preocupação do eu lírico com a realidade social expressa em imagens poéticas inovadoras.

e) a liberdade formal da estrutura poética que dispensa a rima e a métrica tradicionais em favor de temas do cotidiano.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os sapos, de Manuel Bandeira - Exercícios com gabarito



                             
                                         
                                       O sapo (1928), da pintora modernista Tarsila do Amaral.


Leitura

O poema a seguir, "Os sapos", de Manuel Bandeira, foi declamado por Ronald de Carvalho no segundo sarau da Semana, sob vaias e gritarias. O público, durante a leitura, gritava em uníssono: "Foi, não foi!".

          Os sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
-"Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro
Parnasiano aguado, 
Diz:- "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos! 
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos 
Que lhes dei a norma: 
Reduzi sem danos 
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas: 
Não há mais poesia, 
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei" - "Foi!" 
"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
 - "A grande arte é como 
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário. 
Tudo quanto é belo, 
Tudo quanto é vário, 
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas: 
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa 
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo, 
Sem glória, sem fé, 
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu, 
Transido de frio,
Sapo-cururu 
Da beira do rio...

(Estrela da vida inteira. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970. p. 51-2.)

cético: cheio de dúvida.
cognatos: termos que têm o radical em comum, como, por exemplo, pedra e pedreiro.
frumento: o melhor trigo.
joio: planta que nasce entre o trigo e prejudica seu desenvolvimento. perau: barranco, abismo.
transido: penetrado, repassado de frio, dor ou medo.

1. Os modernistas dos anos 1920 frequentemente tinham atitudes de ironia, deboche e critica em relação à cultura oficial. 
 a) Aponte no poema um exemplo de ironia ou deboche. 
A própria crítica a poetas do passado, identificados como "sapos"; a provável referência ao pai de Olavo Bilac, herói na Guerra do Paraguai; o emprego de expressões como "parnasiano aguado".

b) Que movimento literário, visto como representante da cultura oficial, é satirizado? Comprove sua resposta com elementos do texto. 
O Parnasianismo, que tinha uma concepção  formalista de arte.  A referência ao movimento se encontra na expressão "parnasiano aguado" e nos versos " -A grande arte é como/Lavor de joalheiro", que lembram o poema "A profissão de fé", de Olavo Bilac.

c) A fala do sapo-tanoeiro, delimitada pelas aspas, veicula o princípio básico do movimento literário satirizado. Qual é esse princípio? 
O princípio da perfeição formal.

2. Explique a oposição feita entre poesia e artes poéticas na 7ª estrofe.
Considerando que são os sapos que estão falando, poesia corresponde à "verdadeira poesia", na concepção parnasiana, ou seja, perfeita formalmente; em oposição a ela, as "artes poéticas" vistas com desprezo, correspondem à poesia de orientação modernista. 

3. Faça uma pesquisa, no dicionário ou com o professor de Biologia, sobre os quatro tipos de sapo mencionados no poema: sapo-boi, sapo-tanoeiro (ou ferreiro), sapo-cururu e sapo-pipa. Depois responda: 
a) De que modo o poeta sugere o som característico dos sapos?
Empregando expressões e versos bastante ritmados, que têm uma função onomatopeica no texto, como "- 'Não foi!'/-'Foi!'/ - 'Não foi!'".

b) Na hierarquia dos sapos, pelo critério da raridade, qual dos sapos mencionados é o mais simples e comum em nosso país? 
O sapo-cururu.

c) Nesse poema, os sapos são metáforas de tendências estéticas da literatura brasileira. Considerando-se a condição precária ("Sem glória, sem fé) do sapo-cururu, o que ele pode representar no cenário cultural brasileiro? 
Pode representar o nascer de uma nova poesia ou arte brasileira: simples, cotidiana e à margem da "grita" acadêmica.

A última crônica, de Fernando Sabino (Exercícios com gabarito)

Trabalhando o gênero

Leia esta crônica, de Fernando Sabino:

              A última crônica

     A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano; fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer um flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
      Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
     Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. 
     A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de coca-cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa a um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
     São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a coca-cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo, limpa o farelo de bolo que lhe cai no colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. 
     Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(Fernando Sabino. In: A companheira de viagem. Rio de Janeiro: Record)

circunstancial: relativo à situação, estado ou condição de coisa(s) ou pessoa(s) em determinado momento. 
contenção: ato de conter-se, manter-se dentro de certos limites, controlar. 
pitoresco: divertido, original.
redoma: cúpula de vidro usada para proteger certos objetos ou resguardar alimentos. sôfrego: apressado, impaciente.

1. A crônica é um gênero textual que oscila entre literatura e jornalismo e, antes de ser publicada em livro, costuma ser veiculada em jornal ou revista. No início da crônica em estudo, o cronista conta que parou num botequim para tomar café no balcão, mas, na verdade, estava com esse gesto adiando o momento de começar a escrever. Ao falar da falta de assunto, o cronista revela onde procura material para escrever.

a) Onde ele procura assunto? 
No cotidiano, na vida diária.

b) Em que consiste esse material? Dê exemplos. 
Em fatos circunstanciais, acidentais, como, por exemplo, um flagrante de esquina, as palavras de uma criança, um incidente doméstico.

2. A crônica quase sempre é um texto curto, com poucas personagens, que se inicia quando os fatos principais da narrativa estão por acontecer. Por essa razão, nesse gênero textual tempo e o espaço são limitados. Na crônica em estudo, o cronista, em busca de assunto, olha ao redor, vê o casal de negros com a filha e, do que observa a partir de então, extrai o material para seu texto.

a) Quais são as personagens envolvidas na história? 
O cronista (que fala de si mesmo e depois observa a cena no botequim), o casal de negros,  a filha do casal e garçom. 

b) Onde acontece a comemoração? 
No botequim onde se encontra o cronista, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos.

c) Qual é, aproximadamente, o tempo de duração desse fato?
Poucos minutos: o tempo de o pai fazer o pedido, o garçom atendê-lo, a mãe colocar as velinhas no bolo, o pai acendê-las, os três cantarem parabéns a você " e a menina assoprar as velas  e começar a comer. 

3. Em uma crônica, o narrador pode ser observador ou personagem. Qual é o tipo de narrador da crônica em  estudo? Justifique sua resposta.
Narrador-personagem, pois ele participa da história, como demonstra o emprego dos verbos e pronomes na 1ª pessoa: "A caminho de casa, entro num botequim..., "Assim eu quereria a minha última crônica..."

4.O cronista costuma ter sua atenção voltada para fatos do dia a dia ou veiculados em notícias de jornal e os registra com humor, sensibilidade, crítica e poesia. Ao proceder assim, qual dos seguintes objetivos o cronista espera atingir com seu texto?
a) Informar os leitores sobre um determinado assunto.
b) Entreter os leitores e, ao mesmo tempo, levá-los a refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos.
c) Dar instruções aos leitores.
d) Tratar de um assunto cientificamente.
e) Argumentar, defender um ponto de vista e persuadir o leitor.

5. Observe a linguagem empregada na crônica em estudo.
a) Como é narrada a cena do aniversário: de forma impessoal e objetiva, isto é, em linguagem jornalística, ou de forma pessoal e subjetiva, ou seja, em linguagem literária? 
De forma pessoal e subjetiva em linguagem literária.

b) A crônica, quanto à linguagem que apresenta, está mais próxima do noticiário de jornais ou revistas ou mais próxima de textos literários? 
Está mais próxima de textos literários. 

c) Que tipo de variedade linguística ela adota?
A variedade padrão de língua.

6. Como a maioria dos gêneros ficcionais, a crônica pode ser narrada no presente ou no pretérito.
a) Que tipo de tempo verbal predomina na crônica em estudo?
 O presente do indicativo.

b) Que efeito de sentido a escolha desse tempo verbal confere ao texto? 
O leitor é conduzido pelo cronista; envolve-se com os pensamentos e dificuldades dele e  participa da cena descrita por ele. 

7. Leia este poema, de Manuel Bandeira:

              O último poema 

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas 
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(Poesia completa & prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983. p. 223.)

Esse é o poema que contém o verso citado no 1º e no último parágrafos da crônica em estudo. Releia-os e, considerando também o poema, responda: 

a) Que tipo de crônica é possível dizer que o cronista pretendia escrever? 
 Provavelmente uma crônica que fosse terna, que falasse de coisas simples e comuns, que não contivesse uma lição, que fosse o menos intencional possível.

b) O cronista conseguiu realizar o que pretendia? Justifique sua resposta.
Sim, porque de uma cena cotidiana ele conseguiu extrair o assunto para a crônica que pretendia escrever: pura, simples e o menos intencional possível.


Questões do Enem: Naturalismo

1. 
Comer com as mãos era um hábito comum na Europa, no século XVI. A técnica empregada pelo índio no Brasil e por um português de Portugal era, aliás, a mesma: apanhavam o alimento com três dedos da mão direita (polegar, indicador e médio) e atiravam-no para dentro da boca.

Um viajante europeu de nome Freireyss, de passagem pelo Rio de Janeiro, já no século XIX, conta como "nas casas das roças despejam-se simplesmente alguns pratos de farinha sobre a mesa ou num balainho, donde cada um se serve com os dedos, arremessando, com um movimento rápido, a farinha na boca, sem que a mínima parcela caia para fora". Outros viajantes oitocentistas, como John Luccock, Carl Seidler, Tollenare e Maria Graham descrevem esse hábito em todo o Brasil e entre todas as classes sociais. Mas para Saint-Hilaire, os brasileiros "lançam a [farinha de mandioca] à boca com uma destreza adquirida, na origem, dos indígenas, e que ao europeu muito custa imitar".

Aluísio de Azevedo, em seu romance Girândola de amores (1882), descreve com realismo os hábitos de uma senhora abastada que só saboreava a moqueca de peixe "sem talher, à mão".

Dentre as palavras listadas a seguir, assinale a que traduz o elemento comum às descrições das práticas alimentares dos brasileiros feitas pelos diferentes autores do século XIX citados no texto.

a) Regionalismo (caráter da literatura que se baseia em costumes e tradições regionais).
b) Intolerância (não admissão de opiniões diversas das suas em questões sociais, políticas ou religiosas).
c) Exotismo (caráter ou qualidade daquilo que não é indígena; estrangeiro; excêntrico, extravagante).
d) Racismo que sustenta a superioridade de certas raças sobre outras).
e) Sincretismo (fusão de elementos culturais diversos, ou de culturas distintas ou de diferentes sistemas sociais).

2. 
 Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho de Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam temente com um chorado baiano. Nada mais os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor: música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo. 

                      AZEVEDO, A. O cortiço. São Paulo: Ática, 1983 (fragmento).

No romance O Cortiço (1890), de Aluízio Azevedo, as personagens são observadas como elementos coletivos caracterizados por condicionantes de origem social, sexo e etnia. Na passagem transcrita, o confronto entre brasileiros e portugueses revela prevalência do elemento brasileiro, pois

a) destaca o nome de personagens brasileiras e omite o de personagens portuguesas.
b) exalta a força do cenário natural brasileiro e considera o do português inexpressivo.
c)mostra o poder envolvente da música brasileira, que cala o fado português.
d) destaca o sentimentalismo brasileiro, contrário à tristeza dos portugueses.
e) atribui aos brasileiros uma habilidade maior com instrumentos musicais.

Questões do Enem: Realismo no Brasil

1. O texto a seguir foi extraído de uma crônica de Machado de Assis e refere-se ao trabalho de um escravo.

"Um dia começou a guerra do Paraguai e durou cinco anos, João repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pelas vitórias. Quando se decretou o ventre livre dos escravos, João é que repicou. Quando se fez a abolição completa, quem repicou foi João. Um dia proclamou-se a República. João repicou por ela, repicaria pelo Império, se o Império retornasse.

(MACHADO, Assis de. Crônica sobre a morte do escravo João, 1897)

A leitura do texto permite afirmar que o sineiro João:

a) por ser escravo tocava os sinos, às escondidas, quando ocorriam fatos ligados à Abolição. 
b) não poderia tocar os sinos pelo retorno do Império, visto que era escravo.
c) tocou os sinos pela República, proclamada pelos abolicionistas que vieram libertá-lo.
d) tocava os sinos quando ocorriam fatos marcantes porque era costume fazê-lo.
e) tocou os sinos pelo retorno do Império, comemorando a volta da Princesa Isabel.

2. No trecho a seguir, o narrador, ao descrever a personagem, critica sutilmente um outro estilo de época: o romantismo.

     "Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Jackson,1957.

A frase do texto em que se percebe a crítica do narrador ao romantismo está transcrita na alternativa:

a) ... o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas
b) ... era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça...
c) Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, ...
d) Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos...
e)... o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.

3.           Capítulo III

     Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava açúcar, ia dis- farçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. Prata, ouro, eram os metais que amava de coração; não gostava de bronze, mas o amigo Palha disse-lhe que era matéria de preço, e assim se explica este par de figuras que aqui está na sala: um Mefistófeles e um Fausto. Tivesse, porém, de escolher, escolheria a bandeja, primor de argentaria, execução fina e acabada. O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas, e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província, nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços.

ASSIS, M. Quincas Borba. In: Obra completa. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993 (fragmento).

Quincas Borba situa-se entre as obras-primas do autor e da literatura brasileira. No fragmento apresentado, a peculiaridade do texto que garante a universalização de sua abordagem reside
a) no conflito entre o passado pobre e o presente rico, que simboliza o triunfo da aparência sobre a essência.
b) no sentimento de nostalgia do passado devido à substituição da mão de obra escrava pela dos imigrantes.
c) na referência a Fausto e Mefistófeles, que representam o desejo de eternização de Rubião.
d) na admiração dos metais por parte de Rubião, que metaforicamente representam a durabilidade dos bens produzidos pelo trabalho.
e) na resistência de Rubião aos criados estrangeiros, que reproduz o sentimento de xenofobia.

4.     Capítulo LIV - A pêndula 

     Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, e a contá-las assim:
    - Outra de menos...
    - Outra de menos....
    - Outra de menos...
    - Outra de menos....
    O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.
    Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados.

ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992 (fragmento).

O capítulo apresenta o instante em que Brás Cubas revive a sensação do beijo trocado com Virgília, casada com Lobo Neves. Nesse contexto, a metáfora do relógio desconstrói certos paradigmas românticos, porque

a) o narrador e Virgília não têm percepção do tempo em seus encontros adúlteros.
b) como "defunto autor", Brás Cubas reconhece a inutilidade de tentar acompanhar o fluxo do tempo.
c) na contagem das horas, o narrador metaforiza o desejo de triunfar e acumular riquezas.
d) o relógio representa a materialização do tempo e redireciona o comportamento idealista de Brás Cubas.
e) o narrador compara a duração do sabor do beijo à perpetuidade do relógio.

   5.            Mal secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora 
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce. 
Tudo o que punge, tudo o que devora 
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora, 
Ver através da máscara da face, 
Quanta gente, talvez, que inveja agora 
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo 
Guarda um atroz, recôndito inimigo, 
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe, 
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

CORREIA, R. In: PATRIOTA, M. Para compreender Raimundo Correia. Brasília: Alhambra, 1995.

Coerente com a proposta parnasiana de cuidado formal e racionalidade na condução temática, o soneto de Raimundo Correia reflete sobre a forma como as emoções do indivíduo são julgadas em sociedade. Na concepção do eu lírico, esse julgamento revela que

a) a necessidade de ser socialmente aceito leva o indivíduo a agir de forma dissimulada.
b) o sofrimento íntimo torna-se mais ameno quando compartilhado por um grupo social.
c) a capacidade de perdoar e aceitar as diferenças neutraliza o sentimento de inveja.
d) o instinto de solidariedade conduz o indivíduo a apiedar-se do próximo.
e) a transfiguração da angústia em alegria é um artifício nocivo ao convívio social.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Casamento, de Adélia Prado (Atividade com gabarito)

Casamento 
Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes. 
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

1. O título do poema é "Casamento". O que os versos de Adélia Prado falam sobre isso?

O poema constrói uma visão feliz do casamento. O eu-poético feminino descreve um momento feliz vivido com o marido, quando juntos, em silêncio, limpavam peixes pescados por ele. Ela se sente como quando se viram pela primeira vez.

2. Há, nos primeiros versos do poema, a declaração de uma discordância. Explique.

O eu-poético não concorda com as mulheres que se recusam a "limpar peixes" para os maridos e recorda um momento em que essa tarefa, feita junto com o companheiro, significou um momento muito feliz.

3. Como você interpreta os versos abaixo?

“O silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio profundo." “Coisas prateadas espocam/ somos noivo e noiva.

Resposta pessoal

Amor I Love You, de Marisa Monte e Carlinhos Brown (Atividade com gabarito)

       

Considere atentamente a letra da canção.

Amor I Love You

                            Marisa Monte/Carlinhos Brown

Deixa eu dizer que te amo

Deixa eu pensar em você

Isso me acalma, me acolhe a alma

Isso me ajuda a viver


Hoje contei pras paredes 

Coisas do meu coração

Passei no tempo, caminhei nas horas

Mais do que passo a paixão


É um espelho sem razão 

Quer amor, fique aqui


Meu peito agora dispara

Vivo em constante alegria

É o amor que está aqui


Amor I Love You

Amor I Love You..


"...tinha suspirado,

tinha beijado o papel devotamente! 

Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas

sentimentalidades, 

e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso

que saía delas,

como um corpo ressequido que se estira num

banho tépido;

sentia um acréscimo de estima por si mesma, 

e parecia-lhe que entrava enfim numa 

existência superiormente interessante,

onde cada hora tinha o seu encanto diferente, 

cada passo condizia a um êxtase, 

e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"


A letra da canção que você leu / ouviu é acompanhada de um trecho do romance "O Primo Basílio", de Eça de Queiroz, importante escritor da literatura portuguesa do século XIX. O fragmento corresponde ao momento da história em que Luísa, casada com Jorge, recebe uma carta de seu primo, Basílio, com quem viverá uma história de amor. Considere, inicialmente, a canção de Marisa Monte e Carlinhos Brown.

1. Na sua opinião, como essa letra representa o sentimento do amor?

 Como um sentimento que nos acalma, que traz alegria extrema, que nos faz bem. Também como um sentimento que nos "tira" da realidade, nos faz "caminhar nas horas", "conversar com paredes".


2. Explique o verso: "É um espelho sem razão"?

Quando amamos, nossa visão da realidade se altera, ou seja, nós a espelhamos, vemos as coisas a partir dos nossos sentimentos e não de forma racional.


3. Relacione o trecho do romance de Eça de Queiroz e a letra da música Amor I love you? 

O texto de Eça de Queiroz descreve o comportamento de uma mulher apaixonada, que se sente como alguém que "entra numa existência superiormente interessante". É também dessa forma que a letra da música representa os amantes apaixonados.

4. Leia, agora, mais um trecho do romance de Eça de Queiroz, que se segue ao fragmento citado na música acima:

"...tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho"

                                                                  Eça de Queiroz - O Primo Basílio

Relacione também esse outro fragmento à letra da música.

Esse outro fragmento do romance Primo Basílio realça a forma como Luísa se sente. Tudo lhe parece belo, bom, perfeito. A realidade se transforma vista pelo olhar da mulher apaixonada. Suas preocupações do dia anterior desaparecem depois de ler a carta de amor.

Questões do Enem: Arcadismo no Brasil

Texto comum às questões 1 e 2.

Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes outeiros,
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros 
Pelo traje da Corte, rico e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino, 
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia
Que, da Cidade, o lisonjeiro encanto,

Aqui descanse a louca fantasia,
E o que até agora se tornava em pranto
Se converta em afetos de alegria.

COSTA, Cláudio Manoel da. In: Domício Proença Filho. A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 78-9.

1. Considerando o soneto de Cláudio Manoel da Costa e os elementos constitutivos do Arcadismo brasileiro, assinale a opção correta acerca da relação entre o poema e o momento histórico de sua produção.
a) Os "montes" e "outeiros", mencionados na primeira estrofe, são imagens relacionadas à Metrópole, ou seja, ao lugar onde o poeta se vestiu com traje "rico e fino".
b) A oposição entre a Colônia e a Metrópole, como núcleo do poema, revela uma contradição vivenciada pelo poeta, dividido entre a civilidade do mundo urbano da Metrópole e a rusticidade da terra da Colônia.
c) O bucolismo presente nas imagens do poema é elemento estético do Arcadismo que evidencia a preocupação do poeta árcade em realizar uma representação literária realista da vida nacional.
d) A relação de vantagem da "choupana" sobre a "Cidade", na terceira estrofe, é formulação literária que reproduz a condição histórica paradoxalmente vantajosa da Colônia sobre a Metrópole.
e) A realidade de atraso social, político e econômico do Brasil Colônia está representada esteticamente no poema pela referência, na última estrofe, à transformação do pranto em alegria.

2. Assinale a opção que apresenta um verso do soneto de Cláudio Manoel da Costa em que o poeta se dirige ao seu interlocutor.

a) "Torno a ver-vos, ó montes; o destino" (v.1)
b) "Aqui estou entre Almendro, entre Corino," (v.5)
c) "Os meus fiéis, meus doces companheiros," (v. 6)
d) "Vendo correr os míseros vaqueiros" (v. 7)
e) "Que, da Cidade, o lisonjeiro encanto," (v. 11)

Questões do Enem - Modernismo no Brasil: Segunda Geração - consolidação da lírica moderna

1. No poema "Procura da poesia", Carlos Drummond de Andrade expressa a concepção estética de se fazer com palavras o que o escultor Michelângelo fazia com mármore. O fragmento a seguir exemplifica essa afirmação.
(...)
Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra 
e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: 
trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 13-14

Esse fragmento poético ilustra o seguinte tema constante entre autores modernistas:
a) a nostalgia do passado colonialista revisitado.
b) a preocupação com o engajamento político e social da literatura.
c) o trabalho quase artesanal com as palavras, despertando sentidos novos.
d) a produção de sentidos herméticos na busca da perfeição poética.
e) a contemplação da natureza brasileira na perspectiva ufanista da pátria.

2.        Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas. 
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade
                                                 [e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, 
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem
                        [mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te
                                                         [ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo
                                                          [Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala
                                                     [de visitas:
este orgulho, esta cabeça baixa... 
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

ANDRADE, C. D. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

Carlos Drummond de Andrade é um dos expoen- tes do movimento modernista brasileiro. Com seus poemas, penetrou fundo na alma do Brasil e trabalhou poeticamente as inquietudes e os dilemas humanos. Sua poesia é feita de uma relação tensa entre o universal e o particular, como se percebe claramente na construção do poema "Confidência do Itabirano". Tendo em vista os procedimentos de construção do texto literário e as concepções artísticas modernistas, conclui-se que o poema anterior

a) representa a fase heroica do modernismo, devido ao tom contestatório e à utilização de expressões e usos linguísticos típicos da oralidade.

b) apresenta uma característica importante do gênero lírico, que é a apresentação objetiva de fatos e dados históricos.

c) evidencia uma tensão histórica entre o "eu" e a sua comunidade, por intermédio de imagens que representam a forma como a sociedade e o mundo colaboram para a constituição do indivíduo.
d) critica, por meio de um discurso irónico, a posição de inutilidade do poeta e da poesia em comparação com as prendas resgatadas de Itabira.
e) apresenta influências românticas, uma vez que trata da individualidade, da saudade da infância e do amor pela terra natal, por meio de recursos retóricos pomposos.

3.          Verbo ser

     QUE VAI SER quando crescer? Vivem per- guntando em redor. Que é ser? É ter um cor- po, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrivel, ser? Dói? É bom? E triste? Ser: pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.

ANDRADE, C. D. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aquilar, 1992.

A inquietação existencial do autor com a autoimagem corporal e a sua corporeidade se desdobra em questões existenciais que têm origem 
a) no conflito do padrão corporal imposto contra as convicções de ser autêntico e singular.
b) na aceitação das imposições da sociedade seguindo a influência de outros.
c) na confiança no futuro, ofuscada pelas tradições e culturas familiares.
d) no anseio de divulgar hábitos enraizados, negligenciados por seus antepassados.
e) na certeza da exclusão, revelada pela indiferença de seus pares.

4. 
Ai, palavras, ai, palavras, 
que estranha potência a vossa! 
Todo o sentido da vida 
principia a vossa porta:
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa; 
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota... 
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil, como o vidro 
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

MEIRELES, C. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985 (fragmento).

O fragmento destacado foi transcrito do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Centralizada no episódio histórico da Inconfidência Mineira, a obra, no entanto, elabora uma reflexão mais ampla sobre a seguinte relação entre o homem e a linguagem:
a) A força e a resistência humanas superam os danos provocados pelo poder corrosivo das palavras.
b) As relações humanas, em suas múltiplas esferas, têm seu equilíbrio vinculado ao significado das palavras.
c) O significado dos nomes não expressa de forma justa e completa a grandeza da luta do homem pela vida.
d) Renovando o significado das palavras, o tempo permite às gerações perpetuar seus valores e suas crenças.
e) Como produto da criatividade humana, a linguagem tem seu alcance limitado pelas intenções e gestos.

 5.               Olá! Negro

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos e a quarta e a quinta gerações de teu sangue
                                                                                                                            [sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações dessas gerações quando
                                           [apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de USA
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a
                                                        [canga
de todos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!
Olá, Negro! Olá, Negro! 
A raça que te enforca, enforca-se de tédio,
                                                       [negro!

LIMA, J. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958 (fragmento).

O conflito de gerações e de grupos étnicos reproduz, na visão do eu lírico, um contexto social assinalado por
a) modernização dos modos de produção e consequente enriquecimento dos brancos.
b) preservação da memória ancestral e resistência negra à apatia cultural dos brancos.
c) superação dos costumes antigos por meio da incorporação de valores dos colonizados.
d) nivelamento social de descendentes de escravos e de senhores pela condição de pobreza.
e) antagonismo entre grupos de trabalhadores e lacunas de hereditariedade.

Questão do Enem - Modernismo no Brasil: Primeira Geração ( prosa e teatro )

"Precisa-se nacionais sem nacionalismo, (...) movidos pelo presente mas estalando naquele cio racial que só as tradições maduram! (...). Precisa-se gentes com bastante meiguice no sentimento, bastante força na peitaria, bastante paciência no entusiasmo e sobretudo, oh! sobretudo bastante vergonha na cara!
    (...) Enfim: precisa-se brasileiros! Assim está escrito no anúncio vistoso de cores desesperadas pintado sobre o corpo do nosso Brasil, camaradas."

(Jornal A Noite, São Paulo, 18/12/1925 apud LOPES, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. São Paulo: Duas Cidades, 1972)

No trecho anterior, Mário de Andrade dá forma a um dos itens do ideário modernista, que é o de firmar a feição de uma língua mais autêntica, "brasileira", ao expressar-se numa variante de linguagem popular identificada pela(o):

a) escolha de palavras como cio, peitaria, vergonha.
b) emprego da pontuação.
c) repetição do adjetivo bastante.
d) concordância empregada em Assim está escrito. 
e) escolha de construção do tipo precisa-se gentes.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Questões do Enem: Modernismo no Brasil (Primeira Geração - poesia)

1. A discussão sobre gramática na classe está "quente". Será que os brasileiros sabem gramática? A professora de Português propõe para debate o seguinte texto:

        Pra mim brincar

    Não há nada mais gostoso do que o mim sujeito de verbo no infinito. Pra mim brincar. As cariocas que não sabem gramática falam assim. Todos os brasileiros deviam de querer falar como as cariocas que não sabem gramática.
    _ As palavras mais feias da língua portuguesa são quiçá, alhures e miúde.

 (BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e verso. Org: Emanuel de Moraes. 4. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986. Pág. 19)

Com a orientação da professora e após o debate sobre o texto de Manuel Bandeira, os alunos chegaram à seguinte conclusão:

a) uma das propostas mais ousadas do Modernismo foi a busca da identidade do povo brasileiro e o registro, no texto literário, da diversidade das falas brasileiras.

b) apesar de os modernistas registrarem as falas regionais do Brasil, ainda foram preconceituosos em relação às cariocas.

c) a tradição dos valores portugueses foi a pauta temática do movimento modernista.

d) Manuel Bandeira e os modernistas brasileiros exaltaram em seus textos o primitivismo da nação brasileira.

e) Manuel Bandeira considera a diversidade dos falares brasileiros uma agressão à Língua Portuguesa.

2. "Poética", de Manuel Bandeira, é quase um manifesto do movimento modernista brasileiro de 1922. No poema, o autor elabora críticas e propostas que representam o pensamento estético predominante na época.
          
                  Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de
[ponto expediente protocolo e manifestações    
                                [de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar
          [no dicionário o cunho vernáculo de um
                                                         [vocábulo

Abaixo os puristas
.....................................................................
Quero antes o lirismo dos loucos 
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é
                                                     [libertação.

(BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro. Aguilar, 1974)

Com base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:
a) critica o lirismo louco do movimento modernista.
b) critica todo e qualquer lirismo na literatura.
c) o retorno ao lirismo do movimento clássico. 
d) propõe o retorno ao lirismo do movimento romântico.
e) propõe a criação de um novo lirismo.

3. Leia o poema a seguir e responda às questões.

                     Brasil

O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte 
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
 Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu! 
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus 
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
 E fizeram o Carnaval

                         (Oswald de Andrade)

Esse texto apresenta uma versão humorística da formação do Brasil, mostrando-a como uma junção de elementos diferentes. Considerando-se esse aspecto, é correto afirmar que a visão apresentada pelo texto é
a) ambígua, pois tanto aponta o caráter desconjuntado da formação nacional, quanto parece sugerir que esse processo, apesar de tudo, acaba bem.
b) inovadora, pois mostra que as três raças formadoras - portugueses, negros e índios - pouco contribuíram para a formação da identidade brasileira.
c) moralizante, na medida em que aponta a precariedade da formação cristã do Brasil como causa da predominância de elementos primitivos e pagãos.
d) preconceituosa, pois critica tanto índios quanto negros, representando de modo positivo apenas o elemento europeu, vindo com as caravelas.
e) negativa, pois retrata a formação do Brasil como incoerente e defeituosa, resultando em anarquia e falta de seriedade.

4. A polifonia, variedade de vozes, presente no poema resulta da manifestação do
a) poeta e do colonizador apenas.
b) colonizador e do negro apenas.
c) negro e do índio apenas. 
d) colonizador, do poeta e do negro apenas.
e) poeta, do colonizador, do índio e do negro.

5.             Namorados

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
- Antônia, ainda não me acostumei com o seu
                                    [corpo, com a sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
- Você não sabe quando a gente é criança e de
                    [repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava: 
- A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
- Antônia, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
- Antônia, você é engraçada! Você parece louca.

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa & prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.

No poema de Bandeira, importante representante da poesia modernista, destaca-se como característica da
escola literária dessa época
a) a reiteração de palavras como recurso de construção de rimas ricas.
b) a utilização expressiva da linguagem falada em situações do cotidiano.
c) a criativa simetria de versos para reproduzir o ritmo do tema abordado.
d) a escolha do tema do amor romântico, caracterizador do estilo literário dessa época.
e) o recurso ao diálogo, gênero discursivo típico do Realismo.

6.           Erro de Português

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de Sol
O índio tinha despido
O português.

ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

O primitivismo observável no poema anterior, de Oswald de Andrade, caracteriza de forma marcante 
a) o regionalismo do Nordeste.
b) o concretismo paulista.
c) a poesia Pau-Brasil.
d) o simbolismo pré-modernista.
e) o tropicalismo baiano.

7. Após estudar na Europa, Anita Malfatti retornou ao Brasil com uma mostra que abalou a cultura nacional do início do século XX. Elogiada por seus mestres na Europa, Anita se considerava pronta para mostrar seu trabalho no Brasil, mas enfrentou as duras críticas de Monteiro Lobato. Com a intenção de criar uma arte que valorizasse a cultura brasileira, Anita Malfatti e outros artistas mo- dernistas
a) buscaram libertar a arte brasileira das normas acadêmicas europeias, valorizando as cores, a originalidade e os temas nacionais.
b) defenderam a liberdade limitada de uso da cor, até então utilizada de forma irrestrita, afetando a criação artística nacional.
c) representaram a ideia de que a arte deveria copiar fielmente a natureza, tendo como finalidade a prática educativa.
d) mantiveram de forma fiel a realidade nas figuras retratadas, defendendo uma liberdade artística ligada à tradição acadêmica.
e) buscaram a liberdade na composição de suas figuras, respeitando limites de temas abordados.

8.                    Estrada

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do
                                                       [caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo mundo é igual. Todo mundo é toda a
                                                        [gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a
                                                    [sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de
                                            [negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz
                                                         [meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada
                                                         [por um
bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir,
                                                        [pela voz
dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

BANDEIRA, M. O ritmo dissoluto. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.

A lírica de Manuel Bandeira é pautada na apreensão de significados profundos a partir de elementos do cotidiano. No poema "Estrada", o lirismo presente no contraste entre campo e cidade aponta para
a) o desejo do eu lírico de resgatar a movimentação dos centros urbanos, o que revela sua nostalgia com relação à cidade.
b) a percepção do caráter efêmero da vida, possibilitada pela observação da aparente inércia da vida rural.
c) a opção do eu lírico pelo espaço bucólico como possibilidade de meditação sobre a sua juventude.
d) a visão negativa da passagem do tempo, visto que esta gera insegurança.
e) a profunda sensação de medo gerada pela reflexão acerca da morte.

9.               O trovador

Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras... 
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som
                                                   [redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom... 
Sou um tupi tangendo um alaúde!

ANDRADE, M. In: MANFIO, D. Z. (Org.) Poesias completas
de Mário de Andrade. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.

Cara ao Modernismo, a questão da identidade nacional é recorrente na prosa e na poesia de Mário de Andrade. Em "O trovador", esse aspecto é
a) abordado subliminarmente, por meio de expressões como "coração arlequinal" que, evocando o carnaval, remete à brasilidade.
b) verificado já no título, que remete aos repentistas nordestinos, estudados por Mário de Andrade em suas viagens e pesquisas folclóricas.
c) lamentado pelo eu lírico, tanto no uso de expressões como "Sentimentos em mim do asperamente" (v. 1), "frio" (v. 6), "alma doente" (v. 7), como pelo som triste do alaúde "Dlorom" (v. 9).
d) problematizado na oposição tupi (selvagem) x alaúde (civilizado), apontando a síntese nacional que seria proposta no Manifesto Antropófago, de Oswaldo de Andrade.
e) exaltado pelo eu lírico, que evoca os "sentimentos dos homens das primeiras eras" para mostrar o orgulho brasileiro por suas raízes indígenas.

10. 


MUSEU DA LINGUA PORTUGUESA. Oswald de Andrade: o culpado de tudo. 27 set. 2011 a 29 jan. 2012
São Paulo: Prol Gráfica, 2012

O poema de Oswald de Andrade remonta à ideia de que a brasilidade está relacionada ao futebol. Quanto à questão da identidade nacional, as anotações em torno dos versos constituem
a) direcionamentos possíveis para uma leitura crítica de dados histórico-culturais.
b) forma clássica da construção poética brasileira. 
c) rejeição à ideia do Brasil como o país do futebol.
d) intervenções de um leitor estrangeiro no exercício de leitura poética.
e) lembretes de palavras tipicamente brasileiras substitutivas das originais.