terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A última crônica, de Fernando Sabino (Exercícios com gabarito)

Trabalhando o gênero

Leia esta crônica, de Fernando Sabino:

              A última crônica

     A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano; fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer um flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
      Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
     Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. 
     A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de coca-cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa a um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
     São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a coca-cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo, limpa o farelo de bolo que lhe cai no colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. 
     Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(Fernando Sabino. In: A companheira de viagem. Rio de Janeiro: Record)

circunstancial: relativo à situação, estado ou condição de coisa(s) ou pessoa(s) em determinado momento. 
contenção: ato de conter-se, manter-se dentro de certos limites, controlar. 
pitoresco: divertido, original.
redoma: cúpula de vidro usada para proteger certos objetos ou resguardar alimentos. sôfrego: apressado, impaciente.

1. A crônica é um gênero textual que oscila entre literatura e jornalismo e, antes de ser publicada em livro, costuma ser veiculada em jornal ou revista. No início da crônica em estudo, o cronista conta que parou num botequim para tomar café no balcão, mas, na verdade, estava com esse gesto adiando o momento de começar a escrever. Ao falar da falta de assunto, o cronista revela onde procura material para escrever.

a) Onde ele procura assunto? 
No cotidiano, na vida diária.

b) Em que consiste esse material? Dê exemplos. 
Em fatos circunstanciais, acidentais, como, por exemplo, um flagrante de esquina, as palavras de uma criança, um incidente doméstico.

2. A crônica quase sempre é um texto curto, com poucas personagens, que se inicia quando os fatos principais da narrativa estão por acontecer. Por essa razão, nesse gênero textual tempo e o espaço são limitados. Na crônica em estudo, o cronista, em busca de assunto, olha ao redor, vê o casal de negros com a filha e, do que observa a partir de então, extrai o material para seu texto.

a) Quais são as personagens envolvidas na história? 
O cronista (que fala de si mesmo e depois observa a cena no botequim), o casal de negros,  a filha do casal e garçom. 

b) Onde acontece a comemoração? 
No botequim onde se encontra o cronista, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos.

c) Qual é, aproximadamente, o tempo de duração desse fato?
Poucos minutos: o tempo de o pai fazer o pedido, o garçom atendê-lo, a mãe colocar as velinhas no bolo, o pai acendê-las, os três cantarem parabéns a você " e a menina assoprar as velas  e começar a comer. 

3. Em uma crônica, o narrador pode ser observador ou personagem. Qual é o tipo de narrador da crônica em  estudo? Justifique sua resposta.
Narrador-personagem, pois ele participa da história, como demonstra o emprego dos verbos e pronomes na 1ª pessoa: "A caminho de casa, entro num botequim..., "Assim eu quereria a minha última crônica..."

4.O cronista costuma ter sua atenção voltada para fatos do dia a dia ou veiculados em notícias de jornal e os registra com humor, sensibilidade, crítica e poesia. Ao proceder assim, qual dos seguintes objetivos o cronista espera atingir com seu texto?
a) Informar os leitores sobre um determinado assunto.
b) Entreter os leitores e, ao mesmo tempo, levá-los a refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos.
c) Dar instruções aos leitores.
d) Tratar de um assunto cientificamente.
e) Argumentar, defender um ponto de vista e persuadir o leitor.

5. Observe a linguagem empregada na crônica em estudo.
a) Como é narrada a cena do aniversário: de forma impessoal e objetiva, isto é, em linguagem jornalística, ou de forma pessoal e subjetiva, ou seja, em linguagem literária? 
De forma pessoal e subjetiva em linguagem literária.

b) A crônica, quanto à linguagem que apresenta, está mais próxima do noticiário de jornais ou revistas ou mais próxima de textos literários? 
Está mais próxima de textos literários. 

c) Que tipo de variedade linguística ela adota?
A variedade padrão de língua.

6. Como a maioria dos gêneros ficcionais, a crônica pode ser narrada no presente ou no pretérito.
a) Que tipo de tempo verbal predomina na crônica em estudo?
 O presente do indicativo.

b) Que efeito de sentido a escolha desse tempo verbal confere ao texto? 
O leitor é conduzido pelo cronista; envolve-se com os pensamentos e dificuldades dele e  participa da cena descrita por ele. 

7. Leia este poema, de Manuel Bandeira:

              O último poema 

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas 
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(Poesia completa & prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983. p. 223.)

Esse é o poema que contém o verso citado no 1º e no último parágrafos da crônica em estudo. Releia-os e, considerando também o poema, responda: 

a) Que tipo de crônica é possível dizer que o cronista pretendia escrever? 
 Provavelmente uma crônica que fosse terna, que falasse de coisas simples e comuns, que não contivesse uma lição, que fosse o menos intencional possível.

b) O cronista conseguiu realizar o que pretendia? Justifique sua resposta.
Sim, porque de uma cena cotidiana ele conseguiu extrair o assunto para a crônica que pretendia escrever: pura, simples e o menos intencional possível.


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