Capítulo primeiro/óbito do autor
[...]
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: -"Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. [...]
Memórias póstumas de Brás Cubas. In Obra completa, vol. 1. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1962.
Releitura
1. No primeiro parágrafo, o narrador compara suas Memórias com o Pentateuco: os cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos ao profeta Moisés, sugerindo que a diferença radical entre ambas as obras estaria apenas no tipo de sequência de que se utilizam.
a. Na sua opinião, qual é na verdade a diferença radical cia as Memórias de Brás Cubas do Pentateuco? que distancia as Memórias de Brás Cubas do Pentateuco?
b. A partir dessa comparação, o que se pode dizer da personalidade de Brás Cubas?
2. Por que Brás Cubas sente a necessidade de justificar a exígua presença de amigos em seu enterro? E como ele faz isso?
3. O discurso fúnebre tem um forte elemento romântico, ironizado pelo escritor. De que elemento se trata?
4. Relacione a afirmação de que é irônica a utilização do Romantismo no texto com a última frase nele presente.
RESPOSTAS
1a. Enquanto o Pentateuco é uma obra sagrada, fundadora de uma tradição religiosa e atribuída a um profeta de importância universal, as Memórias... constituem apenas o relato que um homem faz de sua vida, depois de morto.
1b. A grandiloquência dessa comparação denuncia a mania de grandeza do narrador- personagem.
2. Considerando que Brás Cubas se comparou ao profeta Moisés, universalmente conhecido, ele precisa justificar o pequeno comparecimento a seu enterro e faz isso explicando não ter havido anúncio de falecimento e que, ainda por cima, chovia na ocasião.
3. Trata-se da utilização da natureza para expressar sentimentos humanos.
4. Na última frase deste fragmento, Brás Cubas refere-se ao dinheiro que deixara ao amigo, colocando em dúvida a sua bondade, a sua fidelidade e também a veracidade do elogio fúnebre que este lhe compõe.
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