"Estalagem de São Romão. Alugam- se casinhas e tinas para lavadeiras."
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. [...]
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.
O cortiço. São Paulo, Ática, 1997.
Vocabulário
Cortiço - habitação coletiva das classes pobres.
Revérbero - luz, ou efeito de luz refletida, reflexo.
Jirau - estrado de varas sobre forquilhas cravadas no chão.
Fumegante - que fumega (lança fumaça).
Esfervilhar - remexer-se muito, revolver-se com rapidez, fervilhar.
Considerado nosso mais bem acabado romance naturalista, O cortiço baseia-se na rivalidade entre João Romão - comerciante português que representa a ganância, a vontade de vencer na vida a qualquer custo e o comendador Miranda - burguês bem-sucedido cuja posição João Romão admira e inveja simultaneamente.
Essa história, que tem como personagens tipos sociais, e não propriamente pessoas, revela a genialidade com que Aluísio Azevedo soube retratar as coletividades e as contradições entre exploradores e explorados, no Rio de Janeiro popular e urbano da 2ª metade do século XIX.
Releitura
1. No fragmento lido, o narrador utiliza uma visão panorâmica para descrever o surgimento de um cortiço. Na sua opinião, que relação existe entre o distanciamento em que se coloca perante a cena apresentada e o estilo realista?
O distanciamento do narrador perante a cena apresentada constitui um procedimento característico do estilo realista, já que permite o não envolvimento emocional do autor com a história, e, portanto, sua postura racional e objetiva em relação aos fatos expostos.
2. Uma característica naturalista do fragmento é o paralelo entre o cortiço e o mundo animal, estabelecido por palavras e expressões que evocam este mundo, aproximando o cortiço de seus domínios.
a. Transcreva o parágrafo que melhor ilustra essa afirmação.
" E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco."
b. Destaque, do parágrafo transcrito, os verbos que indicam tratar- se de uma proliferação promíscua, bestial de pessoas.
Os verbos são minhocar, esfervilhar, crescer, brotar, multiplicar-se.
c. Agora destaque, do mesmo parágrafo, conjuntos de substantivos e adjetivos que constituem e caracterizam o ambiente do cortiço.
"terra encharcada e fumegante"; "umidade quente e lodosa".
3. A fusão entre os seres e o ambiente a que pertencem, vendo os primeiros como produtos do segundo, é outro traço naturalista fortemente presente no trecho. Que comparação presente no fragmento pode ser utilizada para justificar tanto a animalização do homem quanto a sua redução às condições ambientais?
A comparação é "[...] um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia [...] multiplicar-se como larvas no esterco".
4. Discuta com seus colegas: predominam no trecho lido características realistas ou naturalistas?
No trecho lido predominam características naturalistas.
5. Leia um fragmento de O cortiço, de Aluísio Azevedo, e responda às questões a ele relacionadas.
[...]
Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço, sobressaltava-se agora com os desalentados soluços do ferreiro.
Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como que naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea. [...]
Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo, Ática, 1997, pág. 128.
a. Que transformação vivenciada por Pombinha lhe permite interpretar com "outros olhos" o choro do ferreiro Bruno pela mulher que o abandona?
A transformação é que Pombinha "sentiu o primeiro grito de sangue de mulher", ou seja, deixou de ser menina e pôde, então, compreender melhor o sofrimento amoroso.
b. Em que sentido essa transformação indica a presença do Realismo naturalista no texto?
A transformação de Pombinha indica a presença do Realismo naturalista no texto por seu caráter determinista: ao despertar como fêmea, ela passa a enxergar os homens e suas fraquezas como "fragilidades de animais fortes", encabrestados pela mão da fêmea.
c. Comente a característica estética do Naturalismo presente no seguinte fragmento: "[...] a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras [...]".
Trata-se do zoomorfismo. Ele expressa literariamente a crença dos representantes do Naturalismo na semelhança entre o comportamento do homem e o de qualquer outro animal.
BONS ESTUDOS!
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