Leitura
Quincas Borba (fragmento)
Machado de Assis
Quincas Borba, que não deixara de andar, parou alguns instantes.
- Queres ser meu discípulo?
- Quero.
-Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho que embrague como a verdade. Cré-me, o Humanitismo é o remate das cousas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas...
- Mas que Humanitas é esse?
- Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível [...]. Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?
-Pouco; mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...
-Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se perfeitamente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
- Mas a opinião do exterminado?
- Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
- Bem; a opinião da bolha...
- Bolha não tem opinião. [...]
Quincas Borba. In Obra completa. Vol. I. Rio de Janeiro José Aguilar Editora, 1962, p. 646-647.
Releitura
1. Neste trecho da obra, Quincas Borba, pouco tempo antes de morrer e já tomado pela loucura, convida Rubião para "discípulo" e lhe transmite alguns rudimentos do Humanitismo: a "doutrina filosófica" por meio da qual Machado de Assis ironiza o raciocínio evolucionista, positivista e determinista de sua época. De acordo com o Humanitismo, em nome de Humanitas, isto é, de um princípio irredutível, de uma verdade ou substância que resumiria o universo, a morte se transformaria em vida.
a. Em que argumento básico Quincas Borba se baseia para justificar essa afirmação?
b. Qual a segunda afirmação utilizada por Quincas Borba para explicar o Humanitismo?
c. Qual a função da história sobre as tribos famintas e o campo de batatas, contada por Quincas Borba?
2. Na sua opinião, o que as argumentações utilizadas por Quincas Borba deixam de considerar?
3. O que há em comum entre as afirmações e argumentações de Quincas Borba e o cientificismo da segunda metade do século XIX, presente, por exemplo, na construção de certas personagens naturalistas?
4. Relendo o trecho, e considerando o caráter irônico de que se reveste a presença do Humanitismo na obra, comente o que irônico na frase: "Ao vencedor, as batatas."
RESPOSTAS
1a. Quincas Borba baseia-se no argumento de que a destruição de uma coisa é a condição para o desenvolvimento da outra.
1b. É a afirmação de que a guerra tem um caráter benéfico e conservador.
1c. Quincas Borba conta essa história para fundamentar sua opinião sobre o caráter benéfico que atribui à guerra.
2. Resposta pessoal. Seria interessante conduzir a discussão de modo que os alunos percebam que a defesa do princípio deixa de lado as criaturas, cuja existência se reduz à necessidade de justificá-lo.
3. O elemento comum é a tendência de utilizar a vida humana de forma mecanicista para demonstrar teses redutoras.
4. Resposta pessoal. Professor, seria interessante uma discussão com a classe sobre a ironia diante da figura do vencedor, a quem "batatas" não parece constituir uma recompensa condigna.
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